Vivendo no RS há oito anos, o haitiano Jacques Thomas Laurent, 29 anos, mantinha uma rotina simples. Técnico em enfermagem, ele trabalhava na Santa Casa de Porto Alegre. Quando não estava no hospital, se dedicava aos estudos no curso de Ciência Política, área que tomou gosto por influência do pai, quando ainda era menino. Conforme um irmão, Laurent aproveitava qualquer hora vaga e finais de semana para ler e focar em aprendizado. A dedicação era visível, e o próprio hospital onde ele trabalhava o descreveu como alguém esforçado, uma "pessoa extremamente gentil e responsável no exercício das atividades". No último sábado (2), no entanto, quando estaria se deslocando até o trabalho, o jovem teve os planos interrompidos. Em um assalto, em que um criminoso tentava levar seu celular, foi baleado e não resistiu. O estrangeiro deixa uma filha de cinco anos.
Um homem de 26 anos foi preso em flagrante naquela tarde, suspeito de ter cometido a ação. A Polícia Civil não divulgou o nome do detido, mas GZH apurou que se trata de Willian Santos Silva. O caso é investigado como latrocínio, o roubo com morte (confira abaixo).
Foi o irmão do jovem, Renold Laurent, 34, quem o trouxe para o Brasil, em 2016. O familiar já morava no país desde 2013, e o irmão veio para seguir o mesmo objetivo: estudar e trabalhar. Os dois chegaram a morar juntos por algum tempo, em Canoas, mas Laurent decidiu se mudar, e ultimamente morava sozinho em Viamão. Apesar de em casas separadas, se falavam todos os dias, conta.
— Todos os dias a gente se falava, para saber como o outro estava. Se dormiu bem, acordou bem. Sempre em contato. Naquele sábado, ele me mandou uma mensagem pelas 5h, mas eu não respondi na hora. Estava ocupado de manhã e só retornei pelas 13h. Eu sempre respondia na hora, menos naquele dia. Depois, pelas 16h, soube por uma enfermeira que ele tinha morrido. É algo muito triste — conta o irmão.
Após a morte, Renold, que está em viagem ao México, afirma que está com medo de voltar ao RS — ele mora em Canoas.
Ele acredita que o irmão estava indo para o trabalho quando foi abordado pelo assaltante. Segundo Renold, o irmão costumava chegar as hospital pelas 11h e saia no fim da tarde. Nas horas livres e finais de semana, estudava.
Em 2018, Laurent conseguiu o emprego na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, atuando na higienização do hospital. Com a vivência no espaço, veio o interesse pela área, e ele buscou um curso de Técnico em Enfermagem, cargo que assumiu no ano passado.
Há cerca de dois anos, ele ingressou no curso de Ciência Política na Universidade Cruzeiro do Sul, e iria se formar no ano que vem. A influência do tema surgiu do pai, já falecido.
— Nosso pai gostava muito de política e ensinava para ele. Conversavam sobre isso desde a infância, quando ele tinha uns 10 anos. Depois, com uns 15, ele começou a entender mais, e a partir dos 18 anos estudava o assunto com amigos. Era um tema que gostava muito — conta o irmão, que estuda administração.
Laurent deixa Renold, que vive em Canoas, um irmão que mora nos Estados Unidos e dois que vivem no Haiti, além de uma filha de cinco anos, que nasceu no RS e reside em Canoas.
O enterro do jovem deve ocorrer em Canoas, no próximo sábado (9).
"Linda trajetória", diz hospital
Após a morte, a Santa Casa se manifestou em nota. A instituição afirma que "lamenta profundamente" o falecimento de Laurent, que "teve uma linda trajetória" no hospital.
"Iniciou na higienização e, com o esforço e dedicação que lhe eram características, concluiu o curso de Técnico em Enfermagem. Além disso, era uma pessoa extremamente gentil e responsável no exercício das suas atividades, simbolizando de forma exemplar, pela conduta pessoal e profissional, a diversidade e o acolhimento que temos como premissa entre nossos colaboradores", diz o texto.
A instituição finaliza dizendo que se solidariza com os colegas, familiares e amigos da vítima, "certa de que se fará justiça diante deste crime bárbaro".
Renold também afirma que sempre lembrará com carinho do irmão, que "nunca vai se apagar" em seu coração:
— Era uma pessoa de bom coração, que respeitou todo mundo, nunca teve problemas com ninguém. É algo que nos deixa muito triste. Não sei como isso aconteceu.
Investigação em andamento
Conforme a polícia, o assalto ocorreu na manhã daquele sábado. As equipes foram acionadas por volta das 11h para atender uma ocorrência em que um homem havia sido baleado em uma rua do centro de Viamão. A vítima chegou a ser socorrida por comerciantes, mas faleceu no hospital.
Segundo a ocorrência, um criminoso abordou Laurent e tentou roubar seu celular, mas a vítima teria reagido e foi alvejada com disparos de arma de fogo. Logo depois, o autor do crime fugiu do local, e atirou contra um veículo enquanto corria. O motorista desse carro foi ouvido pela polícia.
— O condutor disse que viu o momento em que o assaltante subtraiu o celular da vítima e fugiu, então buzinou para que ele parasse. Nesse momento, o indivíduo atirou, durante a fuga — explica a delegada Jeiselaure de Souza, da 1ª delegacia de Viamão, que apura o caso.
O inquérito segue em andamento e deve ser concluído nos próximos dias. Enquanto isso, mais pessoas são ouvidas pela polícia. O responsável pelo assalto deve ser indiciado por latrocínio (roubo com morte) e disparo de arma de fogo. A delegada afirma que a autoria do crime está comprovada:
— Não há dúvida algum em relação a autoria ou materialidade do fato. Estamos investigando nesse momento a participação de outras pessoas no contexto do crime.
A delegada afirma que mais detalhes da investigação não são divulgados para não atrapalhar o trabalho.