Um dos crimes mais antigos da história, o assassinato de mulheres em razão do menosprezo à condição feminina fez – e segue fazendo – incontáveis vítimas pelo mundo. No Brasil, essa violência específica, nomeada feminicídio, foi reconhecida em lei federal no dia 9 de março de 2015. Treze dias depois, o mecânico Julio César Kunz, 43 anos, foi o responsável pelo primeiro caso no RS, em Venâncio Aires, de acordo com o Tribunal de Justiça do RS (TJ). Foi condenado e passou cerca de cinco anos em regime fechado. Ao progredir para o regime aberto, ele agrediu, ameaçou e manteve em cárcere privado a atual companheira. Em um ciclo de violência de gênero que ainda não teve fim, o homem retornou a detenção no último dia 5, no mesmo município onde tirou a vida da ex, oito anos atrás.
GZH fez questionamento sobre o caso à Vara de Execuções Criminais (VEC) de Santa Cruz do Sul, responsável pelas decisões de progressão de pena do homem, que informou que Kunz obteve progressão de pena porque cumpria os requisitos para isso. A reportagem também perguntou se, no período em que esteve preso, Kunz passou por atividades como palestras e rodas de conversa que tratem do tema de violência contra a mulher, mas não obteve resposta.
A reportagem também conversou com o magistrado João Francisco Goulart Borges, que atua há 23 anos na Vara Judicial de Venâncio Aires e foi responsável por presidir o júri em que Kunz foi condenado por feminicídio, em 2017.
O juiz optou por não emitir juízo de valor sobre a decisão de progressão, mas falou sobre a nova violência cometida pelo homem.
Para Borges, o caso mostra um "problema cultural que precisa ser trabalhado". Para o magistrado, "a resposta penal foi dada" ao mecânico, com ele sendo julgado e preso. No entanto, é preciso trabalhar a conscientização, especialmente em homens, sobre este tipo de violência.
— Os homens tem de se dar conta de que não são donos das mulheres. Essa é uma chaga social e uma vergonha para a gente, como sociedade. É como se vivêssemos na idade da pedra. Esses homens querem ter controle sobre seus relacionamentos, não ligando para o fato de que as mulheres também têm liberdade para tomar decisões. Para revertermos isso, precisamos atacar na base, ensinando, desde a infância, como se tratam as pessoas, se resolvem os conflitos.
Caso teve forte repercussão
Em março de 2015, a morte de Miriam Roselene Gabe, 34 anos, causou comoção na região do Vale do Rio Pardo. A mulher havia encerrado o namoro com Kunz e vivia um novo relacionamento. Na madrugada de 22 de março daquele ano, ela e o atual companheiro foram abordados por Kunz e agredidos. Procuraram a polícia para registrar o fato, mas o plantonista os orientou a ir ao hospital primeiro, fazer exames de corpo de delito, e depois retornar a delegacia para fazer o boletim de ocorrência. Sozinho, o casal foi até a unidade de saúde.
Não deu tempo. Kunz perseguiu Miriam até o hospital do município, entrou na instituição, arrastou a mulher e a executou a tiros na porta de entrada. A mulher morreu em seguida. Na ação, um segurança do local também foi baleado.
Pelo episódio, ele foi a júri em junho de 2017, e foi condenado a 28 anos e quatro meses de reclusão por feminicídio e tentativa de homicídio (pelo ataque ao segurança do hospital). No entanto, o TJ aceitou um recurso da defesa do homem e a sentença foi reduzida para 19 anos e seis meses de reclusão.
Kunz foi preso no dia seguinte ao feminicídio cometido. Cerca de cinco anos depois, em março de 2020 ele teve aceito o pedido para progressão de pena, indo do regime fechado para o semiaberto porque "já havia implementado o lapso temporal necessário à concessão" e sua conduta carcerária "foi classificada como plenamente satisfatória". Assim, ele foi para a prisão domiciliar e recebeu uma tornozeleira eletrônica.
Em julho deste ano, ele teve novo benefício: deixou o regime semiaberto e ingressou no aberto. A mudança se deu "por estarem presentes os requisitos objetivo (cumprimento do lapso de pena exigido pela Legislação Penal) e subjetivo (conduta plenamente satisfatória do detento)".
"Com isso, ele deveria cumprir algumas condições, sob pena de revogação da medida, entre elas a apresentação trimestral junto ao Juízo da Vara de Execução Criminal" de Venâncio Aires.
Nova violência
No entanto, Kunz cometeu nova violência contra a namorada e foi preso em flagrante no último dia 5, por descumprimento de medida protetiva.
De acordo com a polícia, naquele dia, um domingo, a mulher procurou a polícia pela manhã e registrou ocorrência por ameaça. Ela também solicitou Medida Protetiva de Urgência (MPU), para impedir que o ex se aproximasse, que foi concedida pelo Poder Judiciário.
Horas depois, o homem foi intimado por um oficial de Justiça e comunicado de que não poderia se aproximar da mulher. No entanto, descumpriu a ordem judicial e voltou a procurar a vítima. O homem teria saído pela cidade atrás da ex, a perseguindo.
Conforme o inspetor de polícia do município, Rodrigo Miranda Ethur, depois, Kunz foi até a casa da vítima, onde ela estava com uma amiga. O homem manteve as duas no imóvel, em cárcere privado, por mais de uma hora naquela tarde. Neste período, fez diversas ameaças, afirmando que mataria a mulher.
Em algum momento, as duas conseguiram convencer o homem a deixá-las sair do apartamento, conforme a polícia. Foram direto a delegacia, para registrar que a medida judicial havia sido descumprida.
Conforme nota da BM, enquanto a mulher registrava o segundo boletim, Kunz foi visto "circulando de moto em frente a delegacia" e depois na frente da sede da Brigada Militar.
Na sequência, policiais militares fizeram buscas ao mecânico, que foi encontrado e preso em flagrante. Segundo a BM, ele foi detido pelo descumprimento da MPU, "devido ao histórico de violência" e ao "perigo iminente" que representava à vida da vítima.
A investigação foi concluída no dia 10, e encaminhada à Justiça. Kunz foi indiciado por descumprimento de medida protetiva, ameaça e cárcere privado. Se virar réu, deve responder a novo processo criminal.
O inspetor Ethur afirma que o assassinato cometido por Kunz em 2015 marcou a região, e é lembrado até hoje por moradores. O policial afirma que percebe uma mudança de comportamento no homem conforme a situação em que se encontra:
— Se você conversa com ele, é extremamente educado, calmo, respeitoso. No entanto, é uma pessoa bem agressiva, problemática dentro de relacionamentos. Parece que vira outra pessoa. Na penitenciária, enquanto cumpria detenção, ele trabalhava na cozinha, costumávamos vê-lo, era tranquilo, e depois sabemos de fatos assim, da perseguição à mulher. É algo muito preocupante.
Atualmente, Kunz está preso preventivamente na Penitenciária Estadual de Venâncio Aires.
Contraponto
GZH entrou em contato com a advogada Fernanda Tatiana da Silva Ferreira, que atende Julio César Kunz. Ela informou que não representou o homem no processo de 2015. Sobre o caso atual, a defesa afirmou que só irá se manifestar nos autos do processo.