Em quatro anos, a Justiça gaúcha registrou aumento de 207% no ingresso de novos processos de estupros de vulneráveis — quando a vítima tem até 14 anos. Entre janeiro e julho de 2020, o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS) recebeu 966 novas ações desse tipo, enquanto no mesmo período de 2023 foram 2.969 processos — média de 14 por dia.
A delegada Caroline Bamberg Machado, diretora da Divisão Especial da Criança e Adolescente (Deca), comenta que o aumento de registros no período pode ser reflexo do represamento de denúncias durante a pandemia de coronavírus, entre 2020 e 2022, quando as crianças ficaram mais tempo em casa. Ela reitera que 90% dos casos de violência sexual são praticados dentro das residências ou por pessoas próximas, e que o isolamento social pode ter dificultado as denúncias.
— Tudo indica que nesses dois anos houve diminuição porque as crianças permaneceram mais dentro de casa, supostamente em contato com esses abusadores. Não tiveram contato externo. Então, as pessoas que poderiam fazer alguma denúncia não tiveram contato com elas, que é a escola, rede de saúde, entre outros atores — diz.
A delegada reitera a importância do esforço permanente de combate aos crimes sexuais e as campanhas de conscientização promovidas pelas forças de segurança. Ela destaca também as operações das polícias Civil e Federal no combate à pornografia infantil.
Estupros também tiveram alta
O volume total de ações por estupros também aumentou nos últimos quatro anos, com alta de 83%, passando de 2.081 nos primeiros sete meses de 2020 para 3.814 no mesmo período de 2023. Já o número de casos de estupros que não se enquadram no perfil de vulnerabilidade diminuiu 24%, caindo de 1.115 de janeiro a julho de 2020 para 845 neste ano.
A juíza de direito Fernanda de Melo Abicht, do 2º Juizado da 6ª Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre, também credita essa redução dos estupros contra maiores de 14 anos ao período pandêmico.
— Considerando que os estupros praticados contra maiores de 14 anos também acontecem em grande quantidade em via pública ou em outros locais, que não na própria casa da vítima, com a restrição de circulação de pessoas nas ruas, naturalmente houve uma redução desses delitos no período pandêmico. Assim como houve uma redução de outros crimes comumente praticados nas ruas, como furtos e roubos — analisa a magistrada.
Desafios do Judiciário
Após redução de 15% entre 2020 e 2022, o número de condenações por crimes sexuais na Justiça gaúcha teve alta de 2% nos primeiros sete meses de 2023 — 577 condenações — em relação ao mesmo período do ano anterior — quando houve 566 decisões desfavoráveis aos réus.
Embora com elevação de 2% em relação aos sete primeiros meses de 2022, o volume de absolvições no mesmo período de 2023 (248) ainda é 27% mais baixo do que em 2020 — quando houve 341 decisões favoráveis aos acusados no período.
A promotora Cristiane Della Mea Corrales, Coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Educação, Infância e Juventude do Ministério Público do RS comenta que o principal desafio do Judiciário está na produção de provas, uma vez que o estupro de vulnerável é um crime silencioso e, geralmente, sem testemunhas.
Ela destaca a importância do trabalho pericial realizado no Centro de Referência em Atendimento Infanto-juvenil (Crai) para a produção de provas forenses com uma metodologia que busca evitar a revitimização.
A promotora também frisa a importância da agilidade no encaminhamento das medidas protetivas, para garantir a segurança das vítimas, bem como os encaminhamentos das crianças que precisam ser retiradas da família e enviadas para instituições de acolhimento.
A juíza Fernanda de Melo Abicht relata que, em muitos casos, as crianças demoram a relatar o abuso e, em outros, elas nem sequer têm a dimensão de que foram abusadas. Por isso, a escuta é uma ferramenta importante.
— Aqui em Porto Alegre, no Foro Central I, temos uma sala de acolhimento da vítima e seus familiares, onde estas pessoas são acolhidas antes de prestarem depoimento judicial, evitando-se ainda contato direto com o agressor, a fim de assegurar que a vítima não sofra outras formas de violência, como a institucional — diz a magistrada.
Um estupro de vulnerável a cada três horas
Um estudo divulgado pela Polícia Civil em julho apontou que uma criança foi estuprada a cada três horas no Rio Grande do Sul em 2023. De acordo com o relatório, entre 1º de janeiro e 22 de julho deste ano, 1,5 mil casos de abuso sexual contra vítimas com menos de 14 anos foram registrados no Estado.
De acordo com o estudo, nos últimos cinco anos, o número de registros teve aumento de 12%, passando de 3,3 mil em 2018 para 3,7 mil no ano passado. O estudo aponta, ainda, que apenas 10% dos casos de violência contra crianças e adolescentes no RS são denunciados.
Um problema de saúde
Luisa Fernanda Habigzang, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da PUCRS aponta que, além de uma violação de direitos que configura um crime, o abuso sexual contra crianças e adolescentes é também um problema de saúde.
Vivenciar experiência de abuso sexual na infância está associado a piores índices de saúde geral e de saúde mental ao longo da vida, tanto a curto quanto a longo prazo
LUISA FERNANDA HABIGZANG
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS
— Já existem evidências de que vivenciar experiência de abuso sexual na infância está associado a piores índices de saúde geral e de saúde mental ao longo da vida, tanto a curto quanto a longo prazo. Vemos crianças com depressão, com ansiedade, com transtorno do estresse pós-traumático, com dificuldade de aprendizagem. Essa experiência é muito desorganizadora porque ela fere a percepção que a pessoa tem de valor, de se sentir respeitada, de poder confiar nos outros — pontua.
Educação sexual nas escolas
A professora da PUCRS sublinha que houve avanços significativos no país nos últimos anos e que as escolas, hoje, estão mais comprometidas com a proteção das crianças e adolescentes. Ela também defende a educação sexual nas escolas.
— Sou favorável à questão de poder conversar sobre sexualidade com as crianças, respeitando a etapa do desenvolvimento de cada uma. Quando se conversa sobre isso que esses casos aparecem. É muito importante para que as crianças possam aprender a privacidade sobre o próprio corpo, onde podem ser tocadas, ou não — frisa Luisa Habigzang.
A promotora Cristiane Della Mea Corrales reforça que a principal ferramenta para combater este tipo de crime é a prevenção. Ela ressalta que o acesso às redes sociais é um fator de alto risco para as crianças e adolescentes, que precisa ser observado com atenção pelas famílias.
— As famílias precisam abraçar essa causa. Precisamos trabalhar na prevenção, porque depois que aconteceu o trauma, por melhor que seja o atendimento recebido, provavelmente esta pessoa vai ter um sofrimento para o resto da vida, ou mesmo alguma sequela.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que os profissionais da Educação, assim como os médicos, são obrigados a denunciar casos de suspeita ou confirmação de abusos contra criança ou adolescente. O artigo 245 do ECA prevê multa de três a 20 salários de referência, podendo ser aplicado o dobro em caso de reincidência para quem não denunciar.
O que é estupro de vulnerável
Além dos casos em que o ato sexual é consumado com a vítima, há uma série de comportamentos inadequados que podem configurar estupro de vulnerável, como:
- Toques
- Carícias
- Manipulação de órgãos genitais
- Exposição da criança a materiais pornográficos
Sinais de que uma criança pode ter sido vítima de abuso
As autoridades de segurança alertam para uma série de sinais que podem indicar que uma criança ou adolescente foi vítima de abuso sexual. Eles podem variar de caso a caso, mas todos demandam atenção dos pais, como:
- Mudança repentina de comportamento, com a criança passando de extrovertida a introvertida sem motivo aparente
- Quando a criança começa a evitar uma pessoa em específico
- Se a criança desenvolve medos que não se sabe a origem
- Quando começa a usar somente roupas compridas, que podem estar cobrindo sinais de automutilação
- Regressão comportamental, como voltar a fazer xixi na cama, por exemplo
Como denunciar
- Disque 100: recebe denúncias sobre violência contra criança e adolescente em todo o País
- Brigada Militar: pode ser acionada pelo 190 em qualquer cidade do RS
- Polícia Civil: basta ir à delegacia mais próxima ou repassar a informação pelo telefone de forma anônima. É possível utilizar o Disque Denúncia pelo 181. A Divisão Especial da Criança e do Adolescente (Deca) em Porto Alegre atende pelo telefone 0800-642-6400
- Conselho Tutelar: denúncias são verificadas. Em Porto Alegre, há plantão na Rua Fernando Machado, 657, Centro Histórico, inclusive durante a noite e aos fins de semana. Em casos de emergência é possível ligar para os telefones (51) 3289-8485 ou 3289-2020. O endereço e telefone de cada uma das unidades podem ser conferidos neste link.