Passados 10 dias da morte de Kelly Lidiane Carvalho Moreira, 36 anos, vítima de feminicídio em Uruguaiana, a família ainda busca, em meio ao sofrimento, explicação para o que aconteceu. A auxiliar de serviços gerais foi morta a facadas pelo companheiro, Guilherme Pansardi Grisóstimo, de quem esperava um filho. Ela estava no sexto mês de gestação, e o bebê também não resistiu.
Kelly e o suspeito foram conduzidos pela Brigada Militar para a Delegacia de Polícia na noite de 11 de fevereiro, após ela ter sido vítima de violência doméstica. Depois de feito o registro, os dois foram liberados. De volta à casa onde vivia com os quatro filhos, no bairro Bella Vista, já na madrugada do dia 12, a mulher foi atacada pelas costas e não sobreviveu a pelo menos quatro facadas desferidas pelo agressor, que então acabou preso em flagrante. GZH ainda tenta identificar a defesa dele para contraponto.
— Por que a polícia não deixou ele preso pelo menos por aquela noite? A gente (a família) já tinha organizado para ela ficar na casa de um familiar, onde tem homens que poderiam defender ela. Aqui, somos só mulheres e crianças. Minha tia talvez ainda estivesse entre a gente — desabafa Nathiele Cardoso, sobrinha de Kelly.
A jovem de 20 anos conta ter testemunhado o ataque do agressor e resgatado o filho caçula de Kelly, de cinco anos, da cena do crime após as facadas. Segundo ela, a família não se conforma com o fato de o ex-companheiro ter sido liberado depois do atendimento na delegacia.
— Ele saiu pela porta da frente. Ficamos na mesma sala durante o tempo em que estivemos na delegacia. Ele fez e repetiu ameaças contra minha tia e contra a família. Estamos muito tristes. Não dá para acreditar que isso aconteceu dessa forma — aponta Nathiele.
A sobrinha conta que um silêncio profundo passou a integrar a rotina da família após a tragédia:
— Os guris (filhos da vítima, de 12, 15 e 17 anos) não falam sobre o assunto, não querem conversar com ninguém. O pequeno (de cinco anos) acorda de madrugada, chorando e dizendo que o tio (o agressor, ex-companheiro de Kelly) vai pegar ele. Estava comigo, viu tudo acontecer — lamenta Nathiele.
A sobrinha também diz que os parentes de Kelly têm encontrado dificuldade em obter informações sobre a investigação. Ela afirma que, além do luto, todos que vivem nas duas residências da família estão amedrontados.
— Por quanto tempo ele vai ficar preso? Quando sair, vai voltar aqui para matar a gente também, se vingar nos meninos? Estamos com medo — pontua.
Opressão e vigilância permanentes
A relação de Kelly Moreira e Grisóstimo, depois de cerca de um ano de convívio tenso, era marcada por um comportamento opressor e pela permanente vigilância que o agressor impunha sobre a vítima.
— Ele não deixava a minha tia respirar. Levava e buscava do serviço todos os dias. Como não trabalhava, passava o dia em casa, usando drogas e brigando com os filhos dela. Ouvia ele gritando o tempo todo, mandando o pequeno calar a boca — relata Nathiele.
A sobrinha da vítima conta que os três meninos mais velhos já não queriam parar em casa. Sentiam-se sem liberdade e com temor pelo comportamento instável do ex-companheiro da mãe.
— Ele acabou até com as amizades mais antigas dela. Não deixava minha tia conversar nem mesmo com as pessoas que conhecem ela desde que estava na barriga da minha avó. De tanta pressão que ele fazia, ela passou a me cumprimentar apenas com o olhar — lembra.
Polícia apura falha na conduta de plantonista
A Polícia Civil confirmou, nesta terça-feira (21), que um processo de sindicância está instaurado para averiguar se houve omissão ou falha na atuação da delegada Amanda Andrade, plantonista na Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento de Uruguaiana na noite em que Kelly Moreira foi conduzida pela Brigada Militar, juntamente como seu agressor, para registros e encaminhamentos.
Segundo a titular da 4ª Delegacia de Polícia Regional do Interior, delegada Daniela Barbosa de Borba, a apuração tramita sob a responsabilidade da Corregedoria-geral de Polícia do Estado (Cogepol). O procedimento foi aberto no dia 14 de fevereiro, dois dias depois da morte de Kelly, sob determinação do diretor do Departamento de Polícia do Interior, delegado Nedson de Oliveira.
Já o inquérito policial sobre o feminicídio prossegue sob a titularidade do delegado Matheus Antunes da Rosa, na 1ª Delegacia de Polícia do município. A reportagem procurou o delegado para atualizar informações sobre o inquérito e a situação do suspeito, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Kelly foi assassinada depois da liberação do agressor, seu companheiro até aquela data. Na ocasião, a delegada teria solicitado a concessão de medida protetiva e teria representado pela prisão preventiva do companheiro da vítima, mas ele acabou sendo liberado. A reportagem também fez contato por mensagens com a delegada Amanda Andrade, que não respondeu ao pedido de entrevista até o fechamento deste texto.
Em nota enviada à Redação de GZH, no dia 14, a delegada registrou seu posicionamento:
"Nota da delegada Amanda Andrade
A respeito do fato ocorrido na madrugada de 12 de fevereiro último, a Polícia Civil esclarece que ratificou a prisão em flagrante e representou pela prisão preventiva do autor do feminicídio ocorrido em Uruguaiana. Esclarece que prontamente foram adotadas as medidas inicialmente cabíveis no momento da apresentação da ocorrência. Ressalta-se que, antes da ocorrência do crime, foram representadas pelas medidas protetivas de urgência cabíveis.
Esclarece-se que a vítima em princípio não queria ir à Delegacia, tendo sido convencida por familiares a comparecer. Atendida na Delegacia de Polícia, inicialmente não queria fazer o registro na unidade policial, mas foi devidamente orientada a solicitar medida protetiva e a fazer o registro da ocorrência. Assim, com base nos elementos apresentados à autoridade policial no momento da lavratura da ocorrência, a medida cabível era o encaminhamento à Justiça de pedido de Medida Protetiva de Urgência, o que foi feito ainda na madrugada do dia 12.
A Polícia Civil, em sua esfera, adotou de pronto as medidas investigativas preliminares, porém, infelizmente, fatos que não estavam dentro do domínio da Polícia Civil culminaram na morte da vítima. Foi representado ao Poder Judiciário pela conversão da prisão em flagrante em preventiva, devendo tal pedido ser apreciado nas próximas horas. Reitera-se o compromisso da Polícia Civil com a aplicação da lei penal, objetivando a devida responsabilização do autor pelos fatos ocorridos".