Cecília*, Isabela*, Lourdes* e Natália* não se conhecem. Elas vivem distantes umas das outras, com vidas e empregos diferentes. Mas as quatro compartilham uma história em comum: após terem tido seus caminhos marcados pela violência doméstica, buscam se reerguer, longe de seus agressores.
As quatro procuraram a polícia em busca de medida protetiva de urgência, instrumento previsto na Lei Federal 11.340/06, a Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência contra a mulher. No próximo domingo (7), completam-se 16 anos desde que a legislação foi sancionada — e é vista, por autoridades, como um dispositivo que é colocado em prática, apesar de haver pontos que podem ser melhorados.
Para marcar os 16 anos da lei, GZH relata como é feito o atendimento a vítimas de violência doméstica em Porto Alegre. Nas últimas semanas, a reportagem acompanhou a equipe da Patrulha Maria da Penha do 20º Batalhão de Polícia Militar (20º BPM), na Zona Norte, e o trabalho na Delegacia da Mulher.
Empoderamento
Cecília, 35 anos, tem recebido com frequência as visitas da Patrulha Maria da Penha, do 20º BPM. Após um relacionamento de nove anos, do qual tem uma filha, ela se separou do ex-companheiro há um ano, mas, desde então, tenta se sentir, de fato, livre. Após a separação, ele começou a fazer ligações sem parar, mandar mensagens e importuná-la em casa.
— A violência verbal, sutil, psicológica, de manipulação, de amedrontar, isso eu percebi que sempre vivenciei, e eu não tinha condições de encarar aquilo ali. Eu não conseguia reconhecer. Quando a gente já não tinha mais um relacionamento, ele continuava se mostrando presente, incisivo, manipulando pessoas da minha família. Quando eu não atendia o telefone, ele vinha e parava o carro na frente da minha casa. Daí eu percebi que, na verdade, ele sempre teve esse controle, mas eu achava que era um cuidado. A gente vai perdendo a autonomia, se anulando — relata Cecília.
Além de violência psicológica, a moradora da Zona Norte também foi vítima de violência física e patrimonial, por meio do uso de cartões de crédito dela. As ameaças também passaram a fazer parte da rotina. Desde abril, ela tem uma medida protetiva contra o ex-companheiro, o que prevê afastamento e proibição de comunicação entre os dois.
Quando eu não atendia o telefone, ele vinha e parava o carro na frente da minha casa. Daí eu percebi que, na verdade, ele sempre teve esse controle, mas eu achava que era um cuidado.
CECÍLIA
Vítima de violência doméstica
— Ele me ligava de madrugada dizendo: "Eu vou te degolar", "eu vou te matar", "tu estás sendo negligente com a nossa filha", "tu não atende o telefone".
No primeiro semestre deste ano, 60.632 medidas foram concedidas para mulheres, o que equivale a uma média de 335 por dia, conforme dados da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Estado.
A Patrulha Maria da Penha da Brigada Militar, presente em todos os batalhões da Capital, trabalha na fiscalização do cumprimento dessas medidas. Assim, policiais vão de casa em casa falar com as vítimas para saber se os agressores estão as visitando ou importunando. No 20º BPM, acompanhado por GZH durante uma manhã, são quatro policiais fazendo o trabalho, durante 12 horas diárias, sete dias por semana. A preferência é que a equipe seja composta por um homem e por uma mulher — e é sempre a mulher quem conversa com as vítimas.
— Diante da minha persistência no não, eu fui me empoderando. E isso a equipe toda (da patrulha) faz, ela te empodera. Porque a gente perde os laços com as pessoas, e tu te vê muito sozinha.
Mais de 8 mil vítimas acompanhadas no RS
Implementada em 2012 no Rio Grande do Sul, a Patrulha Maria da Penha está presente em 114 municípios gaúchos. Apesar de não haver projeto para ampliação do programa no momento, a Brigada Militar está investindo na capacitação de PMs do policiamento ostensivo, para que todas as vítimas de violência doméstica tenham o atendimento humanizado e adequado desde o primeiro momento. Assim, o objetivo é que todas as cidades tenham ao menos um policial militar capacitado.
No primeiro semestre deste ano, 11.866 vítimas com pedido de medida protetiva de urgência foram cadastradas na patrulha no RS . Atualmente, 8.860 mulheres estão sendo acompanhadas em todo o Estado. Conforme a BM, ao longo dos seis primeiros meses do ano, foram feitas 29.246 fiscalizações, sendo que 65 prisões foram realizadas por descumprimento da medida.
Já em Porto Alegre, foram sete prisões e 6.353 fiscalizações no primeiro semestre deste ano. No período, 1.514 novas vítimas foram cadastradas, sendo que 885 mulheres são acompanhadas pelas equipes atualmente.
— A violência doméstica é um crime de difícil combate pelo poder público porque acontece no âmbito familiar. No momento em que começa a haver mais denúncias, a partir da vítima e de familiares, o agressor deixa de ser invisível ao poder público — explica o tenente Daniel da Silva Bonifácio, responsável pela Patrulha Maria da Penha no 20º BPM.
Quando assumi um novo namorado, mandou mensagem pra ele dizendo: 'Vai assumir essa vagabunda? Foi por isso que deixei dela'. Ele faz questão de encontrar um jeito para perturbar.
LOURDES
Vítima
Uma das mulheres acompanhadas pela Patrulha Maria da Penha na Capital é Lourdes, 34 anos. Ela relata que a violência começou após a separação. Ela e o ex-marido foram casados por 12 anos e se separaram após a morte do filho, de apenas quatro, que faleceu havia cerca de três anos, após adoecer. Ela conta que o ex-companheiro voltou a entrar em contato, mesmo ela tendo medida protetiva:
— A gente teve audiência e o juiz deixou bem claro que ele não podia entrar em contato, mas ele mandou (Whats) de novo.
Lourdes conta que o ex-marido chegou a sequestrá-la, levando ela e o filho mais velho para o interior, dizendo que iria matá-los. Ele chegou a ser preso pelo crime e foi solto após o início da pandemia. Em fevereiro deste ano, voltou a agredi-la.
— Hoje em dia, ele vive tentando entrar em contato comigo. Pergunta coisas para o meu filho, mesmo não podendo. Eu tinha bloqueado ele, mas ele fez outras (contas de) WhatsApp e tentou entrar em contato. Quando assumi um novo namorado, mandou mensagem pra ele dizendo: "Vai assumir essa vagabunda? Foi por isso que deixei dela". Ele faz questão de encontrar um jeito para perturbar.
Sono mais tranquilo
Quando a reportagem de GZH encontrou Isabela, 24 anos, fazia quatro meses que ela tinha medida protetiva contra o ex-companheiro. Após uma série de visitas da BM, ele deixou de perturbá-la no início de junho.
A jovem teve um relacionamento de cinco anos com o ex-companheiro, com o qual tem um filho pequeno. A violência física e psicológica estiveram presentes desde o início da gravidez e após Isabela dar à luz o filho.
Mas eu sempre acabava voltando, porque ele mexia com meu psicológico. Ele dizia que eu estaria perdendo minha família. Até que, da última vez, ele me deu um soco com meu filho no colo.
ISABELA
Vítima
— Ele queria muito ter filho, mas depois fui entender que ele quis muito que eu engravidasse para ele me prender. Quando eu não calava a minha boca, vinha com agressões. Mas eu sempre acabava voltando, porque ele mexia com meu psicológico. Ele dizia que eu estaria perdendo minha família. Até que, da última vez, ele me deu um soco com meu filho no colo. Eu parei para pensar que não estava bom para o meu filho viver naquele ambiente. Não era saudável — relembra.
O ex-companheiro chegou a enviar um áudio para Isabela, dizendo que iria colocar fogo nela e no seu estabelecimento e que ela nunca mais iria trabalhar. Quando ela assumiu um novo namorado, ele quebrou o carro do jovem, furou os pneus e o ameaçou de morte. Após uma série de descumprimentos da medida protetiva, ele foi chamado para depor e deixou de incomodá-la.
Entre fevereiro e julho, Isabela e a soldado Josiane Cieplak, da Patrulha Maria da Penha, se encontraram sete vezes. Para a jovem, o fato de ter sido sempre recebida por uma policial mulher facilitou o encorajamento:
— A gente se sente mais segura. A gente se entende, e ela muitas vezes se colocou no meu lugar. Foi o maior apoio, eu me senti acolhida de verdade. Pode parecer simples, mas, quando a pessoa te entende, a gente se sente muito melhor.
Enquanto o soldado Giliardi Bitencourt permanece no carro, à disposição para qualquer tipo de auxílio, Josiane é quem fala com as vítimas.
— A mulher se sente mais segura para poder se abrir, ter mais privacidade, se abrir com outra mulher — conta Josiane.
Registro de ocorrências
Mulheres que tenham vivido ou que estejam vivendo episódios de violência devem procurar a Polícia Civil para registrar a ocorrência e, a partir disso, fazer com que os agressores sejam investigados. Em Porto Alegre, o registro pode ser feito em qualquer delegacia, mas há uma especializada neste tipo de atendimento: a Delegacia da Mulher (Deam), que fica na Rua Professor Freitas e Castro, na mesma quadra do Palácio da Polícia, no bairro Azenha.
Por volta das 16h de uma tarde de sol em que GZH esteve no local, praticamente todas as cadeiras do saguão de espera estavam ocupadas. Vinte mulheres aguardavam atendimento, e cinco crianças acompanhavam as mães no local. Era possível ouvir crianças brincando, enquanto algumas das mulheres choravam. Muitas delas se aproximavam do balcão de atendimento e falavam baixo ao relatarem o tipo de ocorrência que precisavam registrar.
Geralmente, a primeira abordagem é feita por profissionais da assistência social, que acolhem as vítimas, verificam a necessidade de abrigamento e ajudam no preenchimento de duas fichas. Em um dos documentos, elas explicam o motivo de estarem ali. No outro, preenchem um formulário de avaliação de risco. Assim, respondem se o agressor já fez ameaças e se já praticou agressões como queimadura, enforcamento, sufocamento, tiro, facada, socos e chutes, entre outros questionamentos. Depois, a ocorrência é registrada pelos policiais, em salas reservadas.
Pela Deam, estão espalhadas fotos de mulheres e mensagens que não se vê em qualquer delegacia, como "temos absorventes e fraldas". Em alguns casos, quando as vítimas saem de casa às pressas, policiais conseguem, inclusive, oferecer comida e roupas. Em uma das salas internas, uma inscrição na parede diz:"Onde não puderes amar, não te demores".
Enquanto acompanhava o trabalho da equipe, a reportagem ouviu uma mulher encorajando a outra, durante a espera pelo atendimento:
— É trabalhoso passar por todo esse processo, mas vale a pena, tem que registrar. Pensa assim: a coragem que tu tem hoje talvez não seja a que tu terá amanhã.
Natália, 27 anos, foi uma das mulheres que procurou a Deam de Porto Alegre na última semana em busca de medida protetiva. Foram sete anos de relacionamento, mais cinco entre idas e vindas. Há três meses, tentava se separar, e conseguiu há cerca de 30 dias. Mas as importunações, que já aconteciam durante o período juntos, continuaram.
— Quando a gente ia fazer seis anos juntos, voltei a estudar e a andar com pessoas da minha idade, voltei a viver. E ele não gostou. Começou a me prender mais, fazer com que eu ficasse mais tempo presa em casa. Chegou o momento em que eu não tinha mais amigas. É triste e chega a ser humilhante dizer isso, mas chegou uma hora em que eu dizia: "Posso ir em tal lugar"?
Como meu filho vai crescer numa casa vendo o pai dele tratar a mãe dessa forma? Ele vai achar normal e vai ser um homem assim quando crescer.
NATÁLIA
Vítima
Emocionada, ela relembra que já foi ameaçada de morte várias vezes e que o ex-companheiro chegou a invadir a casa dela e a agredi-la, em frente à mãe e ao filho pequeno. Ela ouviu podcasts de autoajuda para mulheres e também buscou no filho forças para sair da situação de violência.
— Meu queixo foi cortado e, na hora, meu filho dizia: "Dodói, mamãe, papai". Aquilo me matou. É horrível tu ver que teu filho viu que tu foi agredida. Ali eu parei e pensei: o mais triste é que o amor dele de pai não está acima daquela coisa de poder que ele tem sobre mim. E o amor pelo filho deveria estar acima de tudo, porque o amor de uma mãe é assim. Como meu filho vai crescer numa casa vendo o pai dele tratar a mãe dessa forma? Ele vai achar normal e vai ser um homem assim quando crescer.
Capacitações
Hoje o Rio Grande do Sul conta com 23 Delegacias da Mulher, sendo que apenas a de Porto Alegre funciona 24 horas. Em 52 cidades onde não há delegacias especializadas, funcionam as chamadas Salas das Margaridas — são locais que ficam em Delegacias de Pronto-Atendimento, com a presença de policiais capacitados, preferencialmente do sexo feminino, e atendimento humanizado. Os espaços funcionam como uma "mini Delegacia da Mulher", onde há orientação e atendimento a vítimas de violência.
Mais de 200 policiais receberam capacitação em julho e, assim, novas Salas das Margaridas devem ser abertas até o fim do ano, conforme a delegada Cristiane Ramos, da Delegacia da Mulher de Porto Alegre e diretora da Divisão de Proteção à Mulher do RS. Policiais de outras delegacias da Capital também começaram a ser capacitados.
— Estamos buscando capacitar policiais dessas unidades mais distantes da Deam, porque a mulher às vezes chega lá e o policial não vai ter tanta experiência no trato. Começamos pela Lomba do Pinheiro (5ª DP), com o objetivo de que se crie uma Sala das Margaridas lá também. Em muitos casos as vítimas não têm dinheiro para pegar um ônibus e virem até aqui. Agora, vou apresentar como projeto para outros delegados, que podem demandar. Um local que tem muitas ocorrências também é a Restinga — explica Cristiane.
Lei funciona, mas há pontos a melhorar
Brigada Militar, Polícia Civil, Ministério Público, Defensoria Pública e Justiça concordam em um ponto: a Lei Maria da Penha não fica só no papel e é, de fato, colocada em prática. Os órgãos apontam que as medidas protetivas (que são analisadas pelos juízes, geralmente, em menos de 24 horas) e a prisão por descumprimento já foram uma grande conquista da legislação, assim como o acréscimo recente de outros crimes, como violência psicológica.
— A violência psicológica é o grosso do nosso dia a dia, e era uma lacuna legal que nós tínhamos. Geralmente, é uma das primeiras violências: é o relacionamento tóxico, o cara que controla, que vê com quem tu vai andar, tem tuas senhas de redes sociais. É um abalo muito grande para a mulher — aponta a delegada Cristiane.
À frente da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Estado, a juíza-corregedora Taís Culau de Barros acrescenta que, quando as mulheres possuem medidas contra os agressores, os casos dificilmente chegam à sua forma mais grave, que é o feminicídio. Para ela, o maior avanço necessário diz respeito à educação.
— Precisamos mudar nossa cultura machista, de desigualdade, e que muitas vezes aceita a violência ou não reconhece a violência psicológica como violência, para que a gente possa mudar esses números. Houve um aumento da concessão de medidas protetivas, o que significa que ainda há muita violência.
Promotor de Justiça da Promotoria de Justiça Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, Marcelo Ries acredita que a melhora no acolhimento às vítimas deve passar pela estruturação da rede:
— Parto de onde trabalho. Quando comparamos Porto Alegre a algumas cidades do Interior, vemos que a Capital tem um sistema melhor, inclusive na saúde pública, um sistema de assistência social mais estruturado, centros de referência, casas de abrigo. No Ministério Público, foi criado um grupo com um promotor de cada região, justamente para que se possa agir nos municípios que estão menos estruturados.
Dirigente do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado, Tatiana Kosby endossa a necessidade de melhora da rede de acolhimento e acrescenta ainda a necessidade de prover meios para que as mulheres possam se libertar dos agressores:
— Elas saem de casa com os filhos, não têm dinheiro e dependem economicamente do agressor para sobreviver. Após o registro policial, precisam peregrinar por toda a rede: ir atrás da Defensoria Pública para conseguir alimentos, pensão. E até lá, como comem e como alimentam os filhos? Aí acabam optando em voltar para casa. É preciso capacitar as mulheres para o mercado do trabalho, para que possam sobreviver sem a ajuda do agressor.
* Os nomes são fictícios para proteger a identidade das mulheres vítimas de violência.