Em 13 de abril deste ano, uma operação de transferência de líderes de facções no Rio Grande do Sul para a Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc) representava uma das principais cartadas da segurança pública na tentativa de sufocar os conflitos entre grupos criminosos e cessar a violência que assolava Porto Alegre.
Pelo menos 25 pessoas foram assassinadas na cidade, nesse contexto de guerra do tráfico, entre 14 de março e 22 de abril. Os conflitos instauraram terror em comunidades de áreas conflagradas.
A ofensiva desencadeada naquela madrugada completa um mês nesta sexta-feira (13) num cenário de trégua. A transferência dos criminosos não foi uma ação isolada, mas é fato que, desde então, somente uma morte registrada é apontada como resultado do mesmo conflito.
Em 22 de abril, um homem de 20 anos morreu ao trocar tiros com a Brigada Militar no bairro Sarandi, na Zona Norte. Ele era investigado por envolvimento em dois homicídios, dentro desses confrontos, e estava com mandado de prisão decretado.
Os ataques entre as facções teriam como pano de fundo uma dívida relacionada ao tráfico. De um lado, um grupo com base no Vale do Sinos, que possui ramificações em todo o Estado, e do outro um grupo nascido na Vila Cruzeiro, na Capital.
A série de ataques e revides fez a violência na zona sul de Porto Alegre dar um salto. Foram 32 ocorrências relacionadas a essas disputas, sendo 26 ataques entre facções e seis confrontos de criminosos com policiais.
Os conflitos entre criminosos não deixaram somente mortos, mas também 31 feridos. Entre eles, uma mulher e o filho de três anos alvejados de raspão por criminosos na Vila Planetário, no bairro Santana. No mesmo ataque, um adolescente de 16 anos, que iniciaria na manhã seguinte o estágio na Polícia Civil, foi morto.
Ao longo desse período, 38 pessoas foram presas por suspeita de envolvimento nas execuções, segundo o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). No total, 111 suspeitos foram identificados. Há casos em que o mesmo criminoso é apontado como autor de mais de um fato. Um dos investigados, por exemplo, teria participado de cinco ataques.
As prisões mais recentes aconteceram nesta semana, na terça (10) e na quarta-feira (11). As investigações dos casos continuam, mas não houve até agora novos registros de feridos ou ataques decorrentes da disputa entre as facções.
— Não só criminosos ficam envolvidos nesses conflitos, mas a população é principal vítima dessa história toda. São civis atingidos como efeito colateral. Tínhamos colégios fechados por sensação de insegurança. As ações implementadas devolveram a qualidade de vida normal que as pessoas estavam acostumadas antes do conflito. A matança terminou? Sim. Existe algum episódio criminoso ali? Sim, existe. Mas não naquelas proporções que tínhamos no mês de abril, aquela matança. Isso conseguimos extinguir — afirma o secretário da Segurança Pública, coronel Vanius Santarosa, que assumiu a pasta em abril, em meio aos conflitos.
Finanças e acordo
Embora a transferência das lideranças seja apontada como uma das principais estratégias, antes mesmo de ela acontecer foram colocadas em prática outras táticas. Entre elas, o reforço do policiamento no eixo entre a Vila Cruzeiro e o bairro Cascata, com mais de uma centena de brigadianos, e operações da Polícia Civil para localizar criminosos.
— Segue o policiamento ordinário e efetivos em reforço nessas áreas. Nos bairros considerados, em abril, após encerramento do conflito, ocorreu somente o crime no condomínio da Rua Dona Maria (caso de uma família encontrada morta) — afirma o comandante do 1º Batalhão de Polícia Militar, tenente-coronel Eduardo Michel.
Diretor do Departamento de Investigações do Narcotráfico (Denarc), o delegado Carlos Wendt acredita que as ações com foco nas finanças das facções também trouxeram reflexos na diminuição dos ataques. A guerra entre estes grupos levou à maior presença das forças de segurança na região e isso fez, na análise do policial, com que os negócios dos criminosos ficassem prejudicados. Há informações também de que os próprios bandidos teriam se reunido para acertar a trégua, já que estavam acumulando prejuízos.
— A polícia deu o recado claro, preciso e na hora certa — analisa Wendt.
A redução das vendas nos pontos de tráfico, aliada às operações e à presença constante do policiamento, contribuiu para que os confrontos cessassem, segundo a análise do policial. Aliado a isso, houve a transferência dos presos e responsabilização de outras pessoas envolvidas na cadeia criminosa.
Em uma das várias ações policiais nos locais onde ocorreram conflitos, a esposa do principal líder de uma das facções foi presa. Wendt diz ainda que as grandes operações auxiliaram para que o prejuízo financeiro dos criminosos fosse ainda maior, colaborando para o fim dos ataques.
À frente do DHPP, a delegada Vanessa Pitrez também considera que o conflito foi encerrado a partir de uma série de ações, entre elas a identificação e prisão dos suspeitos. A delegada afirma que a polícia está atenta para novas movimentações dos grupos.
— A reposição, alternância e substituição de pequenas lideranças nas ruas é a rotina comum das organizações criminosas. Isso não nos preocupa. As lideranças mais expressivas não têm rotatividade intensa, pois normalmente já estão presas. O que ocorre é que, quando estão mais isoladas, seu poder na rua é enfraquecido, mas não são substituídas. As substituições são feitas nas ruas e a Polícia Civil atua constantemente para prendê-los — diz a delegada.
Líderes de grupos criminosos seguem na Pasc
Os 10 líderes de grupos criminosos transferidos para a Pasc durante a Operação Fatura, como estratégia para tentar frear os assassinatos na Capital, seguem no local. Os presos foram escolhidos porque se sabia que as ordens para os crimes estavam partindo de dentro do sistema prisional. Eles foram transferidos de três unidades: Presídio Central, Penitenciária Estadual de Porto Alegre e Penitenciária Modulada Estadual de Charqueadas (Pmec).
— Eles devem ser mantidos lá, tendo havido recentemente decisões por parte do juízo de transferências do Poder Judiciário, em caráter definitivo, fazendo a transferência deles para a Pasc. A decisão deu agora caráter definitivo àquela liminar que ratificava a decisão dos órgãos de segurança pública — afirma Mauro Hauschild, secretário de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo.
Os presos passaram por isolamento obrigatório de 10 dias por conta da covid-19 e depois foram encaminhados para as galerias com os demais detentos. Eles permanecem em celas individuais, mas têm contato com os outros durante banho de sol e refeições.
No dia da operação, o governo mencionou que seria adotado regime diferenciado, mas isso depende de obras estruturais e autorizações judiciais. Segundo a secretaria, esses presos estão submetidos a revistas mais frequentes, como forma de tentar evitar acesso a drogas e celulares. Somente dois deles são mantidos na triagem, isolados.
Há obra em andamento para fazer a substituição de 301 portas de todas as celas da penitenciária. A secretaria espera no início de junho fazer a inauguração de todas as novas de uma das galerias. A expectativa é de que, em seis meses, todas as portas tenham sido substituídas.
Além disso, há um projeto para viabilizar a construção de 13 celas dentro da Pasc, com área de pátio individual — assim o preso não teria contato com outros durante o banho de sol. Há também projeto em fase final de orçamento que pretende implantar na penitenciária um sistema de regime disciplinar diferenciado.
— Assim que o projeto e a orçamentação estiverem concluídas, teremos condições de submeter ao governador e à Secretaria da Fazenda para viabilizarmos a possibilidade de buscarmos recursos ou de utilizarmos imóveis para que possa ser então viabilizada a construção desse regime diferenciado junto à Pasc — diz o secretário Hauschild.
A juíza Sonali da Cruz Zluhan, da 1ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, responsável pela fiscalização de sete casas prisionais de Porto Alegre e região, concorda que na Pasc os apenados têm menor convivência entre eles, mas alerta que isso não impede a comunicação com o mundo externo.
— Ali eles convivem com menos gente, isso com certeza. Mas praticamente todos os dias entram drones na Pasc (forma de ingresso de drogas e aparelhos celulares). Eles têm acesso a celulares. A visita íntima é dentro da cela. Eles estão fazendo reformas, então talvez fique mais segura. Mas por enquanto não dá para considerar de alta segurança — afirma a magistrada.
Segundo o governo do Estado, até o fim de maio, a Pasc deve estar com as torres e os equipamentos instalados para o bloqueio de celulares. A empresa que foi contratada está fazendo as fundações para instalação das estruturas que serão utilizadas para sustentar a tecnologia. Haverá ainda um período de testes, que deve durar de 30 a 45 dias, até que a instalação e funcionamento seja definitivo.
R$ 60 milhões apreendidos de facção
Além da transferência das lideranças e do reforço no policiamento nos locais de conflito, uma megaoperação atacou uma das facções envolvidas na disputa. No dia 19 de abril, a maior ofensiva da história da Polícia Civil gaúcha reuniu 1,3 mil agentes em 38 cidades de quatro Estados (além do RS, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul). A Brigada Militar, o Corpo de Bombeiros e a Polícia Rodoviária Federal também apoiaram a ação.
Após um ano e meio de investigação da 1ª Delegacia de Sapucaia do Sul, foi desencadeada a ofensiva de combate à lavagem de dinheiro pelo grupo com base no Vale do Sinos, um dos envolvidas na disputa na Capital. Ao longo da apuração, a polícia identificou que valores obtidos a partir do tráfico de drogas e outros crimes, como assaltos e roubos de veículos, eram lavados pelos criminosos por meio do investimento em aquisições de imóveis, automóveis e negócios de fachada. Com atuação quase empresarial, a facção possui conexões em outros Estados do país e vínculos internacionais.
Além do cumprimento de 58 mandados de prisão, os 200 investigados tiveram na época R$ 50 milhões apreendidos em bens e em dinheiro em várias contas bancárias, todas em nome de laranjas (pessoas que ocultam patrimônios e valores de origem ilícita). Em um dos cumprimentos de mandados, equipes encontraram R$ 41 mil dentro de um urso de pelúcia. O item foi localizado em uma residência em Porto Alegre e seria de uma das principais investigadas da ação, esposa de um dos líderes do grupo criminoso e que foi presa por lavagem de dinheiro. Nas últimas semanas, o montante retirado da facção aumentou e chegou aos R$ 60 milhões.
— Conseguimos o sequestro judicial de mais R$ 3 milhões em dinheiro, nas contas bancárias, e é justamente nesta parte que o valor pode ficar ainda maior. Mas também mais R$ 2 milhões em imóveis e mais R$ 5 milhões em veículos —explica o delegado Gabriel Borges, de Sapucaia do Sul.
Foram sequestrados judicialmente mais de 110 veículos e duas aeronaves, além de cerca de 40 imóveis e 190 contas bancárias. Entre os carros, há exemplares de luxo, como três Mercedes e um Porsche. Nas últimas semanas, por exemplo, foi possível apreender mais 13 automóveis e mais dois imóveis que não estavam na lista inicial, em abril. Ao todo, houve 812 bloqueios fiscais e financeiros, incluindo na Bolsa de Valores de São Paulo.
Alvos da megaoperação também já tinham sido investigados em outra ofensiva do Denarc: em setembro do ano passado, seis traficantes foram presos por envolvimento em um esquema que trazia 200 quilos de drogas por semana ao Estado por meio de aviões vindos do Paraguai. Os entorpecentes eram conduzidos por meio de voos clandestinos a aeródromos gaúchos.
Os próximos passos da ofensiva contra a facção do Vale do Sinos incluem a continuidade das análises, quebras e extração de dados financeiros para buscar mais elementos para as investigações de lavagem de dinheiro pelo grupo. Também será verificada a responsabilidade de cada um dos cerca de 200 investigados em todos os crimes apurados.
— Acreditamos que o impacto foi grande nessa facção (a do Vale do Sinos e que estava em guerra com outra da zona sul da Capital), pois, além do bloqueio dos bens, várias lideranças foram presas ou transferidas — pontua o delegado Mario Souza, diretor da 2ª Delegacia Regional Metropolitana.