Ao abrir a loja na manhã de um sábado, há cerca de duas semanas, duas funcionárias ficaram em choque com uma mensagem recebida no WhatsApp do estabelecimento, localizado no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. No áudio, um homem se identifica como líder de uma facção criminosa que atua na Capital e afirma ter descoberto que o responsável pelo comércio estaria repassando informações sobre o tráfico de drogas na região para a polícia. Com medo, as atendentes correram para trancar a porta e ligaram para a chefia, aos prantos.
— No primeiro momento, tu não fica pensando, tu leva um susto. Elas ficaram com muito medo, ligaram chorando. Começamos a achar que os criminosos podiam ter se enganado de loja, porque a gente não passa nenhuma informação para ninguém, nem tem conhecimento sobre isso. Pedimos para as funcionárias ficarem calmas, que íamos resolver. Aí fomos pesquisar e achamos relatos iguais nas redes sociais. Só depois tu percebe que aquilo não faz sentido, aí elas até riram, mas na hora é assustador — conta a responsável pelo local, que preferiu não se identificar.
Na ameaça, o criminoso afirma ser uma "das primeiras vozes" da facção e cobra explicações dos lojistas do porque estariam denunciando o tráfico. Caso a vítima se negue a dar esclarecimentos, a ordem é para "execução de todos" e para "colocar fogo" no local. Em um dos áudios, um criminoso chega a dizer o nome da loja.
— Pensem nos seus familiares e liguem para mim, para evitar derramento de sangue — ameaça o homem.
Ao perceberem que se tratava de um golpe, os funcionários bloquearam o contato, mas outras duas mensagens chegaram no dia seguinte, com as mesmas ameaças. Os comerciantes registraram um boletim de ocorrência por ameaça junto a polícia.
A investigação é conduzida pelo delegado Ajaribe Rocha Pinto, da 10ª DP, que atende o bairro. Segundo ele, outros relatos do tipo chegaram ao conhecimento da delegacia:
— Muitas pessoas ficam com receio de registrar ocorrência, mas já vimos mais relatos semelhantes, que chegaram ao nosso conhecimento nesse último mês. Desde bar, restaurante, inclusive hotel aqui de Porto Alegre. Em geral, eles amendrontam as pessoas, ameaçam, e depois começam a solicitar um valor para evitar a ação. Em um primeiro momento, parece de fato um trote, pois os criminosos não compareceram para receber o valor, não se consumou.
O delegado explica que algumas ameaças foram feitas também por ligações telefônicas. A orientação, segundo Ajaribe, é que as pessoas registem boletim na polícia e não repassem dinheiro aos criminosos.
Em geral, as vítimas são comerciantes. A categoria se torna um alvo mais fácil aos criminosos porque, em uma breve pesquisa na internet, é possível obter informações sobre os estabelecimentos, como telefone e endereço, rapidamente.
Pelo Estado
Casos do tipo também foram registrados, nas últimas semanas, em outras cidades do Estado.
Em Osório, no Litoral Norte, alguns relatos começaram a chegar até as equipes neste mês, segundo o delegado local, João Henrique Gomes de Almeida.
— É tudo muito recente, mas o que se percebe dos casos que vimos aqui é que são áudios de pessoas com sotaque de outras cidades, usando números que recém foram cadastrados, gente que não tem muitos detalhes sobre as vítimas. Parece mais com uma forma de intimidaçao sem qualquer fundamento, uma maneira genérica de se conseguir valor.
Em Rio Grande, a Polícia Civil divulgou uma nota alertando sobre os casos. A equipe acredita que as ameaças sejam enviadas por detentos de dentro de presídios pelo país. Conforme a delegada local, Lígia Marques Furlanetto, até o momento, apenas um boletim foi feito no município, mas há relatos de mais casos na região. A ocorrência foi registrada por uma vítima que relatou ter efetuado um depósito de R$ 500 aos criminosos.
Assim como Porto Alegre, o município de Rio Grande registrou conflitos de repercussão entre facções recentemente. Os casos na Capital começaram em março e foram sufocados algumas semanas depois. Em Rio Grande, no entanto, ainda há registros. Os ataques entre os grupos podem ter influenciado algumas vítimas a acreditarem nas ameaças recebidas, segundo Lígia:
— É um golpe que se aproveita dessa situação. Aqui em Rio Grande vemos um aumento nos crimes de homicídios desde novembro, em razão de disputas territoriais entre facções. Com todo esse cenário, as pessoas podem acabar acreditando que essas ameças sejam verdadeiras. Talvez, em um outro momento, a pessoa não acreditasse em uma mensagem assim, enviada por uma facção — avalia.
Nas redes sociais, a polícia de Capela de Santana também divulgou nota, na quinta-feira (26), alertando sobre casos na região.
Sotaque de fora
Das características do áudio obtido pela reportagem, a que chama atenção inicialmente é o sotaque do criminoso, de fora do RS, possivelmente do nordeste do país.
Para o diretor da Divisão de Homicídios da Capital, delegado Eibert Moreira, esse é o primeiro indicativo de que se trate de um golpe. Eibert foi um dos nomes a frente do trabalho que sufocou a guerra de facções em Porto Alegre e investiga atuação e ações de grupos criminosos na Capital.
— A gente não tem, dentro das facções daqui, pessoas identificas que sejam do Nordeste. Não há atuação forte de pessoas de lá aqui no Estado. Temos criminosos agindo no RS que são de Santa Catarina, mas do Nordeste não. Outro ponto é que os textos são muito montados, praticamente iguais. Isso acontece bastante nesses casos. Muitas vezes são mensagens enviadas de dentro das cadeias no país. Da mesma forma, também já recebemos informações de pessoas daqui, que estão presas, enviando ameaças para vítimas em outros Estados.
Outro indício de golpe é que, em geral, membros de grupos criminosos não se denominam como integrantes de "facções", afirma Eibert. Em geral, se intitulam "irmãos".
Apesar do aumento de registros do tipo nas últimas semanas, Eibert afirma que teve conhecimento de um caso semelhante em 2019.
Os delegados ouvidos pela reportagem são unâmines: quem receber a ameaça, deve procurar a polícia, registrar boletim e não fazer nenhuma transferência de valores. Depois, a vítima deve denunciar e bloquear o contato.
— Muitas vezes, os golpistas pedem um valor relativamente baixo justamente para que a pessoa, que já está assustada, pague logo e não procure a polícia, na intenção de se livrar o quanto antes daquela situação. Se pedirem um valor mais alto, a pessoa pode não ter o dinheiro e optar por acionar a polícia. Muitas pessoas também ficam com medo de registrar o caso. Mas a gente precisa que as vítimas nos procurem e registrem boletim, para que possamos investigar e agir — explica a delegada Lígia.
Os registros podem ser feitos em delegacias ou pela internet. A vítima deve reunir todas as informações sobre o caso, como imagens das conversas por mensagens, áudios e contato do celular do criminoso, para ajudar na investigação. Orientações junto a Polícia Civil também pode ser fornecidas pelo telefone 197.