A garantia de anonimato aos usuários, a recusa em responder aos pedidos de informações das autoridades e a suspeita da prática de uma infinidade de crimes em canais e grupos de conversas tornou o aplicativo Telegram uma espécie de "dark web" alternativa na rede mundial de computadores. O que antes só era possível encontrar no submundo da internet, pouco acessível para a maioria da população, agora está em qualquer celular ou computador.
Com potencial para influenciar nas eleições de 2022 em razão da proliferação sem controle de notícias falsas, o aplicativo teve 44 grupos e canais monitorados durante um mês por uma equipe da RBS TV, em trabalho exibido neste domingo (13) pelo Fantástico, da TV Globo. A reportagem descobriu indícios de crimes, que vão desde tortura a animais, tráfico de drogas e esquema para inserir no ConecteSUS certificado falso de vacinação contra a covid-19.
O esquema de comprovante de imunização fake, por exemplo, é ofertado em grupos de usuários de Porto Alegre e Gravataí. Nestes canais, um homem que afirma ser de São Paulo cobra R$ 300 para inserir no sistema uma dose e R$ 500 pelo ciclo completo. Os valores só são pagos após o nome do usuário constar como vacinado no aplicativo do SUS, ele ressalta.
— Toda a vacina que eu faço tem um enfermeiro real, tem um lote real. Não posso inventar nem que eu queira — afirmou o homem, em áudio, advertindo ainda que haverá consequências em caso de não pagamento.
Como um dos grupos é identificado como sendo de moradores de Gravataí, o delegado regional da cidade, Juliano Ferreira, fez uma análise preliminar da postagem e produziu um relatório, enviado à chefia da Polícia Civil, para providências, já que o crime pode ter jurisdição federal, cabendo investigação à Polícia Federal.
Há também grupos especializados em espalhar notícias falsas sobre a vacinação. Em um deles, foi postado vídeo de entrevista à Rádio Gaúcha do diretor da Vigilância em Saúde de Porto Alegre, Fernando Ritter, no qual defende a vacinação nas crianças. Para ilustrar o áudio da entrevista, foram editadas fotos de meninos e meninas supostamente mortos por causa das doses.
— Isso é um desserviço à população. Tem de ter controle. As pessoas não podem usar um meio de penetração em massa, como o Telegram ou outros, para postarem o que quiserem. Isso acaba gerando dúvidas em pessoas que ainda têm receio e que gostariam da verdade. Isso atrasa o processo de vacinação — lamenta Ritter.
Canais
A reportagem identificou ainda grupos que disseminam mensagens racistas e neonazistas. Em um deles, negros são comparados a gorilas. "Essa gente tem de ser morta", escreveu um usuário. Em outro, no qual são divulgados conteúdos neonazistas, Adolf Hitler é chamado de o "último grande herói da humanidade" e os nazistas são considerados "anjos de luz". Também há canais com vídeos de tortura a animais e pedofilia - segundo a ONG SaferNet, houve 603 denúncias desse tipo de crime no Telegram em 2020 e 1203 em 2021, enquanto que no WhatsApp os registros não passaram de 32 em 2020 e de nove no ano passado.
A reportagem também simulou negociações de compra de drogas e de armas. E identificou a venda de cartões de crédito clonados e de dinheiro falso, além de dados pessoais vazados a partir de bancos de dados de empresas.
Também teve acesso a arquivo com modelos de documentos falsos, como carteira de identidade em branco e comprovante de residência, que podem ser manipulados em programas de computador.
— É assustador a quantidade de informações, a quantidade de materiais que os estelionatários têm disponíveis para eles hoje, sem o mínimo esforço — afirma o perito em documentoscópica João Henrique Rodrigues, que examinou os arquivos a pedido da reportagem.
Para o delegado Cléo Mazzotti, coordenador-geral de Polícia Fazendária em Brasília, ao qual está subordinada a Divisão de Crimes Cibernéticos da PF, o Telegram se tornou uma espécie de dark web, onde são praticados diversos tipos de crimes. Com uma diferença: qualquer um pode entrar, inclusive omitindo número de telefone e e-mail.
— O que se notou é que boa parte da prática criminosa que era realizada quase que exclusivamente na deep web ou na dark web acabou migrando para o Telegram, até porque é um meio mais fácil de ser utilizado. Existe uma postura desse aplicativo de não colaboração com as autoridades. Ele não permite ou não responde aos questionamentos, às solicitações de informação, o que dificulta ou mesmo inviabiliza as investigações policiais — critica Mazzotti.
Devido a sua capacidade em espalhar informações, sem controle ou punição, o aplicativo é uma preocupação para as eleições desse ano. Por isso, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) criou um programa de enfrentamento à desinformação. Mais de 80 aplicativos e sites toparam participar. O único que sequer se manifestou foi o Telegram.
— O voto é a expressão livre e consciente da vontade do eleitor. É necessário que seja assim, é necessário que o consentimento do eleitor não seja capturado de forma criminosa — declarou o presidente do TSE, Edson Fachin.
Contraponto
Procurado pela reportagem, o aplicativo Telegram não respondeu aos questionamentos.