A entrada no ano de eleições presidenciais tem motivado autoridades brasileiras a demandarem ações de combate à desinformação nas redes sociais. Na terça-feira (15), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) assinou acordos junto a Google, Instagram, WhatsApp, Facebook, TikToK, Twitter e Kwai, nos quais as empresas responsáveis pelas plataformas se comprometem a combater a disseminação de notícias falsas no período eleitoral. O acordo prevê que emitam alertas em caso de notícias não checadas e reduzam o alcance ou retirem da rede postagens ou informações que violem as políticas das redes sociais.
Quem não participou das negociações foi o aplicativo de mensagens Telegram que, diferentemente de outras plataformas, não tem endereço ou representação jurídica no Brasil, ficando fora do alcance da Justiça do país. A empresa tem ignorado as tentativas de diálogo feitas pelo TSE e, diante disso, o ministro Luís Roberto Barroso anunciou que estuda a possibilidade de suspender o aplicativo de mensagens no Brasil.
O Telegram tem uma gama de possibilidades de replicação de mensagens considerada por especialistas ouvidos nesta reportagem superior à de seu principal concorrente, o WhatsApp, e é amplamente utilizado por apoiadores de Jair Bolsonaro e pelo próprio presidente, cujo canal soma quase 1,1 milhão de inscritos. Diante da polêmica, Bolsonaro publicou nesta semana em seu Twitter a mensagem: "Inscreva-se em nosso canal no Telegram e tenha acesso a ações que querem a todo custo esconder de você".
Professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP), Pablo Ortellado explica que o Telegram foi desenhado para não responder a regulações estatais nem entregar dados à Justiça, adotando inclusive medidas como armazenar informações de seus usuários em pedaços, em servidores de diferentes países, dificultando a cooperação. Segundo Ortellado, a empresa defende uma “versão extrema da liberdade de expressão” que é o que atrai muita gente para a plataforma. Como detaca o pesquisador, assim como é utilizado para fins lícitos — como para dar aula e para negócios —, também há margem para atividades ilícitas e criminosas ficarem escondidas, afinal, não há entrega de dados.
— Essa aplicação é onde o bolsonarismo se abrigou, fugindo da regulação imposta em outras plataformas. O Telegram é onde a regulação não alcança e onde não há políticas de moderação. E é por esse motivo que, se essa interdição do Telegram vier, haverá acusações de golpe, de censura. E quanto mais próximo do período eleitoral isso ocorrer, pior — afirma Ortellado.
Entenda o que é o Telegram e o contexto do uso do aplicativo no país, em uma série de perguntas e respostas desenvolvidas com a participação de Ortellado e também de Avelino Zorzo, professor e coordenador do grupo de Segurança de informação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e membro da comissão especial de segurança da Sociedade Brasileira de Computação, e de Cleyton Salomé, CEO da Sidkron, empresa especializada em segurança da informação.
1. O que é o Telegram e para que ele serve?
O Telegram é um aplicativo de mensagens instantâneas baseado em nuvem, por onde usuários podem criar chats ou canais e se comunicar em texto, chamadas de voz e de vídeo. A empresa foi fundada em 2013 pelos irmãos Nikolai e Pavel Durov, nascidos na Rússia e já fundadores da VK (VKontakt), plataforma de mídia social mais utilizada naquele país até hoje. Inicialmente, a sede do Telegram era em São Petersburgo, na Rússia, mas a equipe mudou-se de local algumas vezes — passando por Berlim, Londres e Singapura —, para evitar regulamentações. Atualmente, a sede da empresa fica em Dubai.
Algumas das características que mais o distinguem dos demais mensageiros é que o Telegram permite que seus grupos tenham até 200 mil pessoas. Também permite a criação de canais, que tem número ilimitado de inscritos e servem para a transmissão pública de mensagens para grandes audiências. Seu principal concorrente, o WhatsApp, permite no máximo 256 pessoas por grupo e o encaminhamento de mensagens para apenas cinco pessoas por vez.
2. Quantos usuários o Telegram tem no Brasil e no mundo?
O Telegram soma cerca de 50 milhões de usuários no Brasil. No mundo, são cerca de 550 milhões de usuários mensais, mas a tendência é de que alcance 1 bilhão de usuários em 2022. As estimativas são da plataforma de análise de estatísticas sobre aplicativos Business of Apps. A abrangência do Telegram ainda é menor do que a do WhatsApp, que tem mais de 2 bilhões de usuários no mundo e 120 milhões de usuários no Brasil.
3. Por que o aplicativo tornou-se alvo das autoridades brasileiras?
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) procurou a empresa, sediada em Dubai, para discutir formas de combate à desinformação e à propagação de boatos e notícias falsas por meio do aplicativo durante o período eleitoral de 2022, mas não conseguiu diálogo, diferentemente do que ocorreu com outras plataformas de mensagens. A empresa não possui representação no Brasil, ficando à margem de responsabilização por eventuais problemas gerados pela ferramenta. Diante disso, o ministro Luís Roberto Barroso manifestou que a suspensão do Telegram no país pode ser uma medida viável.
— Nenhum ator relevante no processo eleitoral pode atuar no país sem que esteja sujeito à legislação e a determinações da Justiça brasileira. Isso vale para qualquer plataforma. O Brasil não é casa da sogra para ter aplicativos que façam apologia ao nazismo, ao terrorismo, que vendam armas ou que sejam sede de ataques à democracia que a nossa geração lutou tanto para construir — afirmou o ministro, em entrevista ao jornal O Globo.
No histórico da plataforma, observa o professor Pablo Ortellado, as vezes em que houve alguma cooperação com autoridades de segurança foram em casos relacionados a terrorismo e incitação à violência. É por esse motivo que o pesquisador acredita que as eleições no Brasil não serão argumento suficiente para fazer a plataforma colaborar, de modo que é muito provável que o bloqueio do aplicativo ocorra. Também pesa a memória e o aprendizado de que, nas eleições de 2018, outro aplicativo de mensagens (o WhatsApp) desempenhou um papel eleitoral importante.
— Me parece que o Telegram não vai ceder à Justiça brasileira, não vai cooperar. Só que aí a regulação eleitoral não será aplicada em um aplicativo usado por cerca de 60% ou mais dos brasileiros que têm smartphones. Ficam de fora desse app regras como não poder fazer envios em massa, não poder fazer propaganda eleitoral antecipada e outras. É um aplicativo inteiro, utilizado por muita gente, onde a lei eleitoral não vale — afirma Ortellado.
4. Quais são os prós e os contras de uma eventual suspensão do aplicativo no Brasil?
O especialista em segurança da informação Cleyton Salomé pondera que, num eventual bloqueio do Telegram, diversos negócios brasileiros seriam impactados negativamente, já que a plataforma permite o contato ágil com milhares de pessoas e o compartilhamento de arquivos grandes, o que popularizou o uso da plataforma para cursos online, por exemplo.
— Muitos comerciantes e empresas, como as de delivery, por exemplo, que já utilizam ele no lugar do WhatsApp, vão perder mercado. Também serão prejudicadas as muitas reuniões e videoconferências que são feitas preferencialmente via Telegram, pois ele é muito seguro, é praticamente impossível um hacker entrar no meio da conversa, ouvir do que se trata, pegar informações dos usuários — afirma Cleyton.
O pesquisador e progessor da PUCRS Avelino Zorzo observa que, apesar de muitas pessoas utilizarem o Telegram para funções positivas, como para comunicação e para o crescimento de seus negócios, a dificuldade para responsabilizar a empresa no Brasil faz do aplicativo um solo mais fértil para crimes ou uso inapropriado.
— Acredito que um país tem que ter a capacidade de questionar uma empresa, ou fica muito suscetível a possibilidades de ataques. Hoje existe uma guerra cibernética de informação no mundo, e um país pode desestabilizar o outro de maneira muito efetiva através dos aplicativos. É por isso que pesa uma questão de soberania nacional no momento em que alguns países decidem bloquear aplicativos que não respeitem a legislação local. E isso me parece muito apropriado. No caso do Telegram, para onde vamos recorrer? — afirma Avelino.
5. É possível banir de fato o Telegram?
Os especialistas apontam que, mesmo que o governo brasileiro suspenda o aplicativo no país, pessoas realmente interessadas em manter seus grupos com milhares de usuários podem lançar mão das chamadas VPN - Virtual Private Network ou Rede Privada Virtual - para acessar o Telegram. A prática já é observada em países nos quais o aplicativo está banido.
— Mesmo que consigam bloquear o Telegram aqui no Brasil, dá para utilizá-lo via VPN, que muitas empresas disponibilizam. Nada mais é do que navegar na internet através da rede fornecida pelo servidor de VPN. Mas há o risco adicional de que, num eventual bloqueio do Telegram, o usuário vai tentar burlar com uma VPN gratuita, e é nessa hora que ele é hackeado e suas informações vazam. Em geral, a VPN segura é a que é paga, há um contrato — afirma Cleyton.
6. Quais são as principais diferenças entre Telegram e WhatsApp?
Há uma série de diferenças entre as duas plataformas de mensagens. O limite de pessoas em grupos do Telegram é de 200 mil e no WhatsApp é de 256 pessoas. O Telegram também tem a possibilidade de criação de canais, onde o detentor da página pode postar mensagens ou fazer transmissões ao vivo para um número ilimitado de pessoas. As mensagens do WhatsApp podem ser encaminhadas simultaneamente para, no máximo, cinco pessoas.
Quanto ao uso de robôs, no WhatsApp Business, são disponibilizados os chatbots, utilizados para enviar mensagens de forma automática. Já no Telegram, os bots possibilitam uma infinidade de tarefas, desde jogar jogos, fazer pesquisas até disparar mensagens em massa para os usuários de diferentes grupos.
O Telegram permite o envio e recebimento de arquivos de qualquer tipo, com tamanho de até 2GB cada. No WhatsApp, o tamanho máximo permitido para que arquivos de mídia (fotos, vídeos e mensagens de voz) é de 16MB em todas as plataformas e de 100MB para documentos.
7. O que são os robôs (bots) do Telegram e o que eles fazem?
Os bots são como pequenos programas que são executados dentro do Telegram, e podem ser criados por qualquer pessoa, desde que saiba programá-los. Usando os bots apropriados para cada tarefa, é possível jogar games dentro do app, fazer pagamentos, buscar vídeos, difundir mensagens e uma infinidade de outras possibilidades.
— Se por um lado o bot é uma ferramenta interessante que facilita a vida do usuário do Telegram, de outro, tem um grande potencial para disseminação de fake news. Como existem grupos com milhares de usuários, a possibilidade de difundir informações é muito maior e muito mais rápida. Posso criar um bot e inscrevê-lo em diferentes grupos para compartilhar automaticamente mensagens falsas — afirma Avelino.
Cleyton também pondera que, assim como outras plataformas, o Telegram tem pontos problemáticos, os quais são potencializados pelos robôs.
— Existem vários bots à disposição e alguns deles são utilizados para disseminar cursos piratas, documentos vazados na internet e outras coisas. Se você começar a pesquisar seu CPF por lá, você provavelmente vai encontrá-lo. Para trabalhar, não há como falar mal do Telegram pois ele é muito bom e muito seguro para o usuário final. Mas infelizmente tem esse lado obscuro, pois não sabemos quem faz os robozinhos para o mal — afirma Cleyton.
Segundo o especialista, bots inapropriados podem ser denunciados ao Telegram, mas é difícil rastrear quem criou o bot, pois a segurança do app é alta.
8. Qual a política do Telegram quanto ao compartilhamento de conteúdo ilegal no app?
Em seu site, o Telegram se posiciona dizendo que todos os chats são privados entre os participantes e que a empresa não processará qualquer pedido relacionado a eles. Há, no entanto, canais, bots e pacotes de stickers públicos e que podem ser denunciados se o usuário acreditar que são ilegais pelo e-mail abuse@telegram.org.
9. O que são os chats secretos do Telegram?
A opção chat secreto do Telegram fornece criptografia de ponta a ponta — que é a configuração padrão de apps como o WhatsApp e o Signal — que faz com que apenas as duas pessoas que estão conversando possam ver as mensagens, inacessíveis aos servidores do Telegram.
— O Telegram não tem as conversas secretas como padrão, é necessário iniciar uma conversa deste tipo se o usuário assim quiser. Conversas não-secretas poderiam, em tese, ser acessadas por servidores do Telegram. No WhatsApp, por exemplo, as conversas são cifradas entre os usuários, e ninguém no meio do caminho conseguiria decifrá-las. Já no Telegram, se o usuário não estiver em um bate-papo secreto, a conversa é cifrada entre um usuário e o servidor e depois do servidor até o segundo usuário — afirma Avelino.
Segundo o manual do Telegram, chats secretos são destinados a pessoas que querem mais sigilo do que a pessoa comum. Suas mensagens não podem ser encaminhadas e, quando um usuário apagar as mensagens da sua conversa, o usuário do outro lado do chat secreto será solicitado a apagá-las também. É possível configurar que mensagens, fotos, vídeos e arquivos se autodestruam em um determinado período após terem sido lidos ou abertos elo destinatário.
10. Por que alguns países proíbem ou restringem o uso do aplicativo?
Cerca de dez países já tomaram medidas para restringir o uso do Telegram ou bloquear o aplicativo por completo. Um dos casos mais recente foi na Alemanha, onde, diferente da relação mantida com as autoridades brasileiras, houve uma negociação entre representantes do aplicativo e a ministra do Interior alemão, Nancy Faeser. Como resultado, a empresa bloqueou, no último domingo (13), 64 canais no país após serem considerados desinformativos com relação à pandemia de coronavírus ou que continham discursos de "ódio e incitação".
— O Telegram não deve mais ser um acelerador para extremistas de direita, teóricos da conspiração e outros agitadores. Ameaças de morte e outras mensagens perigosas de ódio devem ser apagadas e ter consequências legais — disse a ministra a um periódico alemão.
O aplicativo é proibido em nações como a China (desde 2015), Bahrein, Irã e ficou bloqueado por pouco mais de dois anos na Rússia — país de origem do fundador Pavel Durov. O bloqueio judicial foi de abril de 2018 a junho de 2020, após a empresa se recusar a ceder dados de usuários às autoridades de segurança do país, que solicitavam as informações com o argumento de que o Telegram estava sendo usado por grupos terroristas e para atividades ilegais. O bloqueio teve fim em 19 de junho de 2020, quando o governo russo emitiu comunicado anunciando uma cooperação do aplicativo contra extremistas, terrorismo, pornografia infantil e apologia às drogas e ao suicídio.
Em países como Índia, Indonésia, Azerbaijão, Belarus, Cuba, Tailândia, Paquistão, o Telegram está em funcionamento, mas já esteve totalmente bloqueado durante alguns períodos e foi liberado com algumas restrições de uso, como o fechamento de contas e a punição de condutas ilegais. Os argumentos das autoridades dos países para as restrições vão desde o combate a grupos extremistas e terrorismo ao combate a protestos contra governos locais e agressão e assédio contra mulheres.