Nos últimos três anos, o Rio Grande do Sul teve salto nos registros de armas novas realizados pela Polícia Federal. De janeiro de 2019 a dezembro de 2021, foram 47 mil. O período coincide com o governo do presidente Jair Bolsonaro, que adotou medidas para flexibilizar o acesso aos armamentos — uma promessa de campanha. Ao compararmos com 10 anos anteriores, de 2009 a 2018, a soma do número de armas novas registradas no Estado é de 38,2 mil.
O cenário no RS segue a tendência nacional, já que o Brasil teve crescimento nos arsenais novos adquiridos — em 2021 foram 204.314 registros (14,9% a mais do que em 2020). No ranking de Estados, os gaúchos aparecem como os terceiros que mais adquiriram armas em 2021 com registro na PF (19.763). Estão na frente somente Minas Gerais, com 26.243, e São Paulo, com 23.042. Apesar de apresentar média de 54 armas registradas por dia, o número no RS não diverge muito de 2020, quando foram 19.043. O maior acréscimo mesmo havia acontecido no ano anterior, já que em 2019 tinham sido 8.258 registros.
Decretos
Quando deputado, Bolsonaro fazia parte do grupo de parlamentares que tentou emplacar alterações legislativas para facilitar o acesso às armas. Durante a campanha presidencial, em 2018, prometeu que facilitaria o acesso. Nos últimos anos, em seu governo, concretizou diversas dessas mudanças, que permitiram, por exemplo, ampliar o número de armamentos adquiridos tanto pelo cidadão comum, como pelos de caçadores, colecionadores e atiradores (CACs).
— O presidente chega ao poder, e, como não conseguiu fazer alterações via Congresso, que seria a forma legal, começou via decretos. Flexibiliza a quantidade de armas, o tipo, e reduz critérios pelos quais as pessoas precisam passar para o Estado dizer se é seguro ou não ela ter uma arma. Reduz o controle e a capacidade de rastreamento dessas armas — critica a diretora de programas do Instituto Igarapé, Melina Risso, que acompanha a questão do controle de armas desde que o Estatuto do Desarmamento começou a ser debatido.
Demanda
Advogado e coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), Fabricio Rebelo defende que as mudanças materializadas ao longo dos últimos anos atendem demanda prévia, antes reprimida no país.
A principal alteração, em seu entendimento, é aquela que retirou da PF a possibilidade de analisar se havia ou não efetiva necessidade de compra da arma pelo cidadão que estava requisitando o pedido.
— Com o governo atual, em 2019, essa regra foi transportada para os decretos e se consolidou. É essa a mudança primordial, feita ainda em novembro de 2018, por instrução normativa, que retirou do delegado a discricionariedade para deferir ou não a compra de arma. Algo que a legislação jamais permitiu, mas era colocada como possibilidade por manobras regulamentares de governos anteriores — afirma, em referência à instrução 131, que estabelecia limite de duas armas por cidadão, e acabou revogada pelo governo Bolsonaro.
No entendimento do Instituto Igarapé, essa alteração por meio de decreto em relação à possibilidade de a PF decidir se o cidadão poderia ou não adquirir nova arma fragilizou o controle. Outra medida criticada é o aumento do prazo para a renovação da posse da arma de fogo de cinco para 10 anos. A principal preocupação da ONG, com sede no Rio de Janeiro, que defende controle mais rigoroso, é com o desvio para o crime dos arsenais comprados legalmente.
— Ficar 10 anos sem saber o que está acontecendo com aquela arma e com a pessoa que adquiriu, é preocupante. Comprar armas sempre foi permitido no Brasil, cumprindo os requisitos. Se a pessoa quer ter, é um risco de foro pessoal. O direito individual não pode ser mais importante que o direito coletivo à segurança — afirma Melina.
Relação com violência
Um dos debates que centraliza a discussão sobre o crescimento da aquisição de armas de fogo é o quanto isso incide na violência. Ao longo dos últimos anos, o RS vem apresentando redução em crimes como homicídios e latrocínios (roubos com morte). Nesse ponto, Fabricio Rebelo reconhece que não há como fazer relação com base científica sobre o crescimento dos arsenais adquiridos e a melhoria dos indicadores. Por outro lado, acredita que a maior possibilidade de a vítima estar armada pode levar o criminoso a desistir da tentativa de cometer o delito.
— Aquele discurso que há muitos anos é defendido no Brasil, por desarmamentistas, de que quando se aumenta a circulação de armas, obrigatoriamente se gera aumento na prática de crimes, é empiricamente falso. A dinâmica de segurança é mais complexa. Não pode simplificar a questão e dizer que crimes caíram por conta da maior circulação de armas. O que temos como fato real é a variação desses dados em sentidos opostos — afirma.
Proteção
Melina Risso, por outro lado, argumenta que os efeitos da maior presença de armas na sociedade podem levar, ao longo dos próximos anos, ao aumento da letalidade, seja por reações por parte do cidadão armado, acidentes ou mesmo desfechos trágicos em casos de violência doméstica.
— Se arma fosse sinônimo de proteção, não veríamos esse número tão grande de policiais vítimas fora de serviço, geralmente quando reagem a um assalto. E estamos falando de pessoas com treinamento, que usam a arma como instrumento cotidiano. E em diferentes situações não conseguem se proteger. Maior volume de arma em circulação leva a aumento da violência, sim. Situações de conflito, que antes não tinham arma no meio, tornam-se letais — afirma.
Mulheres estão em busca de treinamento
No ano passado, uma gerente comercial de 43 anos, moradora de Porto Alegre, tomou uma decisão que por muito tempo não imaginou. Após adquirir uma propriedade na zona rural na Serra, decidiu também comprar uma arma. Junto do marido, já aposentado, realizou curso preparatório e passou a fazer treinamento regular.
— Nunca fui a favor de armas. Não me orgulho de ter uma pistola dentro de casa. Na minha família, ninguém sabe. Decidimos ter por defesa, já que é uma área rural onde a polícia levaria 40 minutos para chegar. Sempre fui muito preocupada com a segurança da minha família. Com o sítio, entendemos que seria necessário — diz.
Além de duas pistolas e uma espingarda, o casal investiu em câmeras e cercamento da propriedade, que decidiu comprar durante a pandemia. Atualmente, os dois procuram ir pelo menos duas vezes por mês a um clube treinar.
— Queremos nos mudar para o sítio futuramente, e ter segurança lá. Poder viver essa experiência mais tranquilos. Quando optamos por adquirir, decidimos fazer tudo o mais certo possível. O que aprendemos é que não adianta fazer o curso e encostar na arma só numa situação de risco — afirma.
A busca por moradia em locais mais afastados é justamente um dos fatores apontados pelos alunos que chegam até a Magaldi Escola e Clube de Tiro, em Porto Alegre, como fator que levou à decisão de compra da primeira arma. Da mesma forma, também houve aumento da procura por parte das mulheres que, em 2021, chegaram a representar metade do público na escola — hoje são cerca de 35%.
— Comprar uma arma não é uma decisão isolada. É como dizer "comprei um carro, mas não sei dirigir". Tem de estar preparado. Se não quiser se habilitar, talvez não seja a melhor escolha. É isso que muitas vezes leva maridos a dizer "minha esposa tem de aprender a usar". Temos muitos casais, ou famílias que decidem se habilitar, treinar, para que todos saibam como agir — diz o proprietário da escola, Dempsey Magaldi.
Insegurança
Foi a insegurança que levou outra moradora da Capital a adquirir a primeira arma no ano passado. Apesar de ser esposa de um policial civil, somente aos 48 anos passou a cogitar a ideia. A decisão aconteceu depois que viu outro motorista assaltado a poucos metros dela, no bairro Menino Deus. Comprou em 12 parcelas uma pistola 9 milímetros — esse calibre era restrito até 2019.
— Tinha acabado de estacionar o carro, e a pessoa de trás foi abordada pelo motociclista, com arma. Ali, eu tremi, fiquei preocupada. Mais um pouquinho, se não tivesse aquele carro, poderia ter sido eu. Mas minha preocupação maior é dentro de casa. Por isso, quis adquirir uma arma, para segurança pessoal — relata.
O medo da criminalidade é um dos motivos mais apontados pelos clientes que buscam a escola Magaldi. Na sequência, vem quem quer praticar o tiro por esporte, ou aliar as duas coisas. Em todos os casos, garante o proprietário, principal preocupação é fazer com que o aluno entenda a responsabilidade do uso da arma, a como se proteger e que nem sempre se deve optar pelo disparo.
— Temos preocupação especial com preparo de quem compra uma arma. Pode ser ótimo atirador, habilitado tecnicamente, se tomar a decisão de tiro errada, reagir ou fazer confronto em situação que não seria adequada, porque não analisou o cenário corretamente, a arma nem sempre vai cumprir o papel de proteção. Em muitas situações a pessoa tem de decidir não atirar, onde confronto não é adequado — conclui.