Imagine descer prédio de rapel invertido, com o rosto voltado para o abismo e um companheiro apoiado nas suas costas, atirando de fuzil...Pense em como é passar dias a fio na mata, com privação de alimento, comendo frutas e alguma caça eventual, às voltas com lama e insetos...Ou ajustar a pontaria e disparar, a uma distância de 100 metros, contra um bandido agarrado a uma refém…
Agora pare de imaginar. Isso existe e não apenas nas produções de Hollywood ou na brasileiríssima série Tropa de Elite. Acontece também na vida real. Em Porto Alegre, inclusive. Essas situações costumam ser enfrentadas por forças especiais, tanto da Brigada Militar quanto da Polícia Civil. E alguns desses pioneiros que atuaram em grupos táticos serão homenageados nesta segunda-feira (4) na sede do 9º Batalhão de Polícia Militar, em Porto Alegre (Avenida Praia de Belas, 800).
Na realidade, será uma cerimônia de mão dupla, a partir das 10 horas. Veteranos do Comando Tático 9 (CT9), um precursor dos grupos de ações especiais das polícias gaúchas, farão uma homenagem ao 9º BPM, ao qual estavam vinculados, nos Anos 80. Esses mesmos 15 militares, hoje reservistas, também serão homenageados pelos 33 anos de criação da sua tropa especial.
— Os veteranos se encontram até hoje, como se fosse no primeiro dia. Um ajuda o outro em questões pessoais e profissionais. É uma irmandade – define o tenente Betho Nunes, que apoiava o CT9 como agente do setor de inteligência. Historiador, ele é um dos organizadores da homenagem, como curador de documentos e peças daquela tropa de elite e também de outras que a inspiraram, como o GSG9 alemão (grupo antissequestro), o SAS britânico, o GIGN francês e a Delta Force (EUA).
Tropas especiais já existiam nas Forças Armadas, desde 1957. E em algumas PMs. Na Brigada Militar esse tipo de unidade foi criada em 1988, com o CT9, embrião para outros grupos de elite das polícias gaúchas. Ele foi sucedido em 1990 pelo Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais), que deixou de ser vinculado ao 9º BPM e, por sua vez, se transformou, em 2019, no Batalhão de Operações Especiais (Bope) de Porto Alegre. Na Polícia Civil existiram unidades semelhantes, como o Grupamento de Operações Especiais (GOE), sucedido pela atual Coordenadoria de Recursos Especiais (Core).
Tanto nas Forças Armadas como nas polícias do mundo inteiro esses comandos gostam de se chamar “caveiras”. Isso devido ao símbolo que usam, universal, a faca cravada numa caveira, que significa vitória sobre a morte.
Numa similaridade em relação ao filme Tropa de Elite, os ex-integrantes do CT9 também se tratam por números. O 07, por exemplo, é um dos snipers do grupo. Já o 04 passou pelas três unidades de ações especiais da BM: o CT9, o Gate e terminou o tempo de serviço no Bope, em 2019. Serviu por 31 anos em Operações Especiais. Eles preferem não individualizar seus nomes, na reportagem.
Um dos convidados para a cerimônia desta segunda-feira é o coronel Eugênio Ferreira da Silva Filho, que, quando comandante do 9º BPM, criou o CT9. Foram dele os primeiros contatos para a aquisição das armas de última geração disponibilizadas ao grupo, os fuzis de precisão PSG1 (de sniper, para acertar alvos à distância) e a submetralhadora MP5 (para combate próximo). Ambos da fábrica alemã Heckler & Koch (HK).
— Fiz estágio na Gendarmerie francesa e nos Carabinieri italianos, então tomei contato com a situação das polícias europeias. Dali saiu a ideia de a BM ter uma tropa especializada em negociações difíceis, em manobras silenciosas. Diferente dos Batalhões de Choque, que já tínhamos, mas cuja função era mais de força — define o coronel Eugênio, hoje na reserva.
O estopim para a criação do CT9 foi a tomada de cinco reféns numa residência na Zona Norte de Porto Alegre. Ante as dificuldades do episódio, o coronel Eugênio decidiu mandar alguns comandados ao Rio, aprenderem táticas do Bope. Foram treinados por policiais que tinham feito estágio de comandos do Exército, em Brasília. Daí saiu o grupo gaúcho.
Ao contrário do que muitos possam pensar, ninguém é obrigado a atuar nessas tropas de elite. Sobram voluntários. E a disputa por uma vaga é um autêntico funil. Conforme levantamento da BM, no primeiro estágio de Comandos e Operações Especiais (que deu origem ao CT9), após rigorosa seleção, 70 começaram e só 14 concluíram o treino, que durou três meses e meio. Na segunda edição do estágio, em 1989, 30 se matricularam e um concluiu.
— Teve gente que emagreceu 20 quilos. O o espírito da época era de desenvolver a rusticidade e tomar decisões sobre pressão. Após a Constituição de 1988 a BM ficou mais voltada para combater o crime comum, o tomador de refém, as quadrilhas de narcoguerrilha e de roubo a banco. E com olhar para possíveis atentados terroristas – explica Betho Nunes, que virou uma espécie de memorialista do CT9.
As provas incluem maestria em tiro, nado funcional (inclusive fardado), mergulho de apneia para resgates em piscinas, sobrevivência na selva, descida de rapel, entrada tática dentro de prédios tomados por reféns. Muitos fizeram ainda cursos de mergulho e paraquedismo. Tudo isso se repetiu nos outros grupos de operações especiais da BM e Polícia Civil.
Os locais de treinamento variavam. Um deles foi na Serra do Umbu, em Maquiné, local de mata densa. Foram feitos adestramentos também nas praias do parque de Itapuã e Saint-Hilaire (ambos na divisa de Viamão com Porto Alegre), no Lami, em Bombinhas (SC, para nado e mergulho no mar), em Guaíba e em várias áreas urbanas de Porto Alegre, como o Beco do Davi.
O estopim, a tomada de reféns numa casa
Um ato de extrema coragem motivou a criação do CT9. Corria 1988, ano em que a Constituição Federal seria mudada. Em 23 de fevereiro daquele ano, dois assaltantes em fuga, após cometerem uma sucessão de roubos na madrugada, invadiram uma casa na Avenida Berlim, Zona Norte de Porto Alegre. Tomaram cinco pessoas como reféns. Acionada a Brigada Militar, a ocorrência foi atendida pelo 9º BPM, unidade responsável pela área, com apoio de outros batalhões e da Polícia Civil. Diante da proporção, o próprio comandante do 9º BPM, o tenente-coronel Eugênio Ferreira da Silva Filho se deslocou ao local. Levou consigo dois experientes policiais, o segundo-tenente Heitor Sá de Carvalho Júnior e o terceiro-sargento Waterson Luiz Simor.
Foram mais de 12 horas de cerco e negociações, até que, em uma audaciosa manobra, o tenente Heitor e o sargento Waterson quebraram o vidro de uma janela nos fundos da residência sem que os criminosos percebessem, entraram na casa e se atracaram em luta corporal com os assaltantes, que foram dominados. Não houve disparo de tiros, nem vítimas feridas.
Do episódio foi extraída pelo coronel Eugênio uma lição: crises como essas não podem depender do heroísmo individual dos policiais. Ele então convenceu a cúpula da BM da necessidade de ter uma tropa preparada para ocorrências de alto risco, semelhante à SWAT americana, ao GSG9 alemão e ao GIGN da Gendarmeria Francesa. O escolhido para sediar o grupo foi o maior batalhão de Porto Alegre, o 9º, que ele comandava.
O tenente Heitor e um colega, tenente Augusto Mamede Freitas de Lima, foram então enviados pelo coronel Eugênio para um curso na Companhia de Operações Especiais da Policia Militar do Rio de Janeiro (hoje Bope, o mesmo do filme Tropa de Elite). Ele fez isso antes mesmo de consultar o Comando-Geral da BM, mas o comandante, coronel Jerônimo dos Santos Braga, se mostrou compreensivo e apoiou. Daí surgiu o primeiro núcleo de Comando e Operações Especiais da Brigada Militar, o CT9, logo sucedido por outros.
Pela luneta do fuzil, os bandidos e a dona de casa ferida
Sniper – ou atirador de precisão – é um sujeito diferenciado na tropa. Treina milhares de vezes disparos à distância (contra centenas, de seus colegas de grupo). É desafiado a acertar uma moeda em distância de 100 metros. E, principalmente, precisa lidar com a noção de morte.
— Uma coisa é atirar em melancias, outra, em pessoas — resume um atirador consultado pela reportagem.
O CT9, em sua breve formação, não teve necessidade de matar. Mas seus integrantes, posteriormente, acertaram “tiros de comprometimento” em bandidos (eufemismo para disparos fatais).
Um dos snipers homenageados na segunda-feira participou de uma das mais dramáticas situações já vivenciadas pelos grupos de elite gaúchos. Os nomes dos envolvidos foram omitidos pela reportagem, para sua preservação. Foi em Sapucaia do Sul, em 3 de novembro de 1993, quando o CT9 já tinha cedido lugar ao Gate. Dois bandidos em fuga se entocaram na residência de uma dona de casa que preparava feijão e arroz com galinha para o almoço. A filha pequena dela estava junto. Seguraram as duas pelo pescoço, em frente a uma janela, na tentativa de desmobilizar o cerco da patrulha da BM que os perseguia.
Foram quatro horas de negociações. Pelo sim, pelo não, atiradores de elite se posicionaram na sacada de uma casa de uma rua lateral, há uns 150 metros da residência com a refém. Vestidos de preto dos pés à cabeça, com máscaras, sentaram em banquinhos, disfarçados entre folhagens. Governador e prefeito acompanhavam a transmissão pelo rádio, mas o atirador não poderia pensar nisso. A questão é técnica, não é pessoal. O desejo é sempre de não ter de puxar o gatilho. Mas desta vez o sangue foi derramado.
É que um dos assaltantes, para mostrar que não estava brincando, começou a disparar contra a dona de casa. Deu um tiro numa perna, os gritos podiam ser ouvidos de longe. O bandido se escondeu entre as cortinas, mandou a refém pedir por socorro. Os policiais não recuaram. Aí o criminoso atirou de novo, na mão esquerda dela.
Veio autorização para que os snipers agissem. Situação difícil, porque os bandidos ficavam entre cortinas. Os dois atiradores dispararam com diferença de um segundo. Os dois bandidos tiveram as cabeças esfaceladas. Um deles ainda baleou a refém mais uma vez, na clavícula, antes de cair morto. A criança não foi ferida. Apesar dos ferimentos, a dona de casa foi hospitalizada e se salvou. Ela virou madrinha do Gate.