A cicatriz aberta pela chacina na Escola Pró-Infância Aquarela dói não só pelo crime em si. Para os moradores, o trauma é ainda maior em razão de o autor do ataque ser um deles. Fabiano Kipper Mai, 18 anos, nasceu e cresceu na mesma cidade onde agora seus 9 mil habitantes choram há três dias o assassinato cruel de três bebês e duas professoras.
O trauma anterior da cidade do oeste catarinense já tem quase seis anos. A enchente que abateu Saudades em 14 de julho de 2015 deixou 30% da área urbana alagada e transformou o Vale da Hospitalidade em um cenário de entulho, sujeira e destruição, com empresas e casas invadidas pela água. O nível do rio subiu tão rápido que parte da comunidade ficou ilhada e não conseguiu salvar nenhum pertence.
Moradores comparam o medo e o pânico vividos desde a manhã de terça-feira (4), quando Kipper invadiu a escola com facão para matar crianças e professores, ao sentimento enfrentado na época em que a cidade foi devastada após a precipitação de 300 milímetros. E não hesitam em assegurar que, agora, a dor é muito maior.
— Nunca acreditamos que alguém daqui iria fazer uma coisa dessas. A nossa cultura é de união. Na enchente, a cidade se recuperou em tempo recorde. E não foi o trauma que está sendo agora — afirma o mecânico Ezequiel Vargas Pimentel, 35 anos.
Nas conversas, os moradores, a maioria de origem alemã, se exibem dizendo que dormem apenas com a porta encostada. A cidade não tem roubo. A maior parte das casas tem pátio aberto ou muro baixo. Lembram de um ou outro homicídio que aconteceu há muitos anos. E não veem sentido em haver segurança reforçada em uma creche que atende exclusivamente crianças de seis meses a dois anos. Afinal, quem faria mal às turmas de bebês?
Nunca acreditamos que alguém daqui iria fazer uma coisa dessas. A nossa cultura é de união. Na enchente, a cidade se recuperou em tempo recorde. E não foi o trauma que está sendo agora.
EZEQUIEL VARGAS PIMENTEL
Mecânico
— Pensar que a pessoa é daqui dói muito. Se ao menos fosse alguém de fora. O choque é maior. Não é ninguém de fora — diz Clevis Biazibetti, 59 anos.
A dona de casa, que mora na esquina da creche Aquarela, já havia colocado a casa à venda antes da tragédia e agora tem pressa para trocar de endereço. Não quer mais abrir a porta de casa e dar de cara com o cenário da tragédia.
Desde o momento do ataque, Saudades parou. Todo comércio fechou a partir do meio dia de terça-feira. Na quarta-feira (5), durante o velório, não havia nada aberto. Até o posto de saúde cerrou as portas e suspendeu, por um dia, a vacinação contra covid-19 devido ao funeral. A partir da noite desta quinta, a Igreja Matriz vai sediar três dias de orações.
— É uma tristeza, uma desolação, parece que não caiu a ficha. Tivemos a catástrofe que a natureza provocou, mas um munícipe provocar isso é totalmente diferente. Está todo mundo tentando se recuperar e querendo entender. Mas não tem o que entender. Matar crianças indefesas de dois anos é inexplicável. Não vai ser esquecido — afirma o motorista e vereador Alfeu Schuch.
A Rádio Saudade interrompeu a programação e deixou músicas gospel, salmos e orações tocando enquanto a despedida das vítimas acontecia no ginásio municipal na manhã de quarta-feira. A locutora Simone Fernandes disse que não sabia como se dirigir aos ouvintes:
— Não tive coragem de fazer meu programa. Não sei nem o que dizer do ar.
São olhares conhecidos de incredulidade que se cruzam na cidade. A professora Keli Adriane Aniecevski e a agente educacional Mirla da Costa Renner são consideradas heroínas que impediram uma tragédia maior. O nome delas está pintado em ônibus escolares e é lembrado com emoção por moradores.
A cidade de rotina previsível virou de ponta cabeça e foi parar no noticiário nacional na quarta-feira:
Tivemos a catástrofe que a natureza provocou, mas um munícipe provocar isso é totalmente diferente. Está todo mundo tentando se recuperar e querendo entender. Mas não tem o que entender. Matar crianças indefesas de dois anos é inexplicável. Não vai ser esquecido.
ALFEU SCHUCH
Motorista e vereador
— Não consigo nem olhar para a televisão — disse a funcionária do único do hotel da cidade, lotado de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas.
Na manhã desta quinta-feira (6), era perceptível que o luto ainda está presente apesar da tentativa de retomada da rotina. O comércio reabriu e fitas pretas colocadas em forma de laço nas maçanetas das lojas deixam claro que a dor é coletiva e vai levar tempo para ser superada. Funcionária de uma loja de roupas, Marisa Link, 30 anos, diz que "todos se conhecem em Saudades".
— A gente trabalha com comércio e vê praticamente todos os envolvidos. Os pais que estão sofrendo são nossos clientes, as professoras também — observou.
A cliente Lucilene Johann Reis, 37, faz coro a comerciante:
— Aqui em Saudades, mexeu com um, mexeu com todos.
Na entrada da cidade, a bandeira verde e branca está a meio mastro e enrolada, logo em frente ao pórtico em arquitetura estilo alemã que dá boas-vindas a quem chega. O prefeito do município, Maciel Schneider, diz que uma série de reuniões com secretários e autoridades do Estado de Santa Catarina vai definir como será a retomada da educação e o que será feito da creche Aquarela.
Precisamos ouvir, acolher a dor e deixar elas sentir.
CARINE BRUNETTO
Psicóloga
— Vai ser uma retomada gradual. Devagarzinho, vamos voltando à normalidade. É algo que, com calma, vamos ter que planejar.
Um grupo de cerca de 20 psicólogos deve atender os familiares das vítimas ao longo dos próximos dias — parte é ligado às prefeituras da região e o restante integra a Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc). A equipe também acompanhará as professoras e outras testemunhas do crime. O grupo estava presente no velório coletivo no ginásio municipal que marcou a despedida das vítimas. A psicóloga Carine Brunetto, que trabalha no Centro de Referência de Assistência Social, explica que o foco do momento é ouvir:
— É uma questão muito difícil. Precisamos ouvir, acolher a dor e deixar elas sentir. A partir de agora, vamos pensar em novas estratégias, sentando em equipe, com assistência social, saúde e educação, para trabalhar com as famílias e comunidade em geral.