Os donos da jogatina clandestina estão sob fogo cruzado no Rio Grande do Sul. De um lado sofrem pressão permanente por agirem fora da lei. Ficam abrindo e fechando estabelecimentos, sempre de olho nas autoridades. Por outro lado, são extorquidos pelas facções do tráfico, que há algum tempo ambicionam o lucro do jogo. Quem se nega a colaborar é ameaçado de morte.
O assédio das facções aos donos da jogatina ilegal vem desde o início da década passada, mas aumentou a partir de 2016. Pelo menos 30 casos são investigados pela Polícia Civil nos vales do Sinos, Paranhana, Taquari e do Rio Pardo, no Litoral Norte, na Serra e nas Missões.
É por isso que existe a hipótese de que o assassinato do bicheiro mais conhecido de Porto Alegre, João Carlos Franco Cunha, o Jonca, seja represália de alguma quadrilha do tráfico — tipo de negócio do qual ele jamais foi acusado. A facção criminosa mais influente na área onde o bicheiro mantinha casa de jogos na Azenha é do Vale do Sinos.
A mesma possibilidade de assassinato a mando de facções é analisada para um caso ainda em aberto: a morte a tiros de Marcos Assmus, dono do Bingo Roma e ex-sócio de Jonca. Ele foi executado em 2012, em meio a rumores de que se recusara a pagar dízimo a uma quadrilha do tráfico. Familiares dele informaram que Assmus foi assaltado na mesma semana da sua morte e, um dia antes da sua execução, o Bingo Roma pegou fogo.
O próprio Assmus foi alvo de duas investigações sobre tráfico. Em uma delas, de 2004, policiais civis encontraram numa chácara de sua propriedade um quilo de maconha e porções de crack. Ele foi condenado a 12 anos de prisão por associação para o tráfico, com pena a ser cumprida no regime semiaberto (da qual recorreu).
Em outro episódio, o bingueiro foi denunciado, em 2008, por supostamente se associar à compra de diversas remessas de cocaína vindas de outros Estados e direcionadas para bairros da zona norte de Porto Alegre, como Vila Farrapos e Rubem Berta. Assmus foi morto antes de o caso ser julgado.
Em Sapiranga, a Polícia Civil conseguiu recentemente a prisão preventiva de 21 suspeitos de praticarem extorsão e ameaças de morte contra donos de caça-níqueis. Eles agem, segundo policiais, a mando da facção do Vale do Sinos. Os autores das ameaças quebraram diversas máquinas e usavam uniformes simulando serem integrantes da Polícia Civil.
Na zona norte da Capital, a extorsão é praticada por outra facção, com origem na Vila Bom Jesus, segundo relatam representantes de bingueiros ouvidos pela reportagem. Algumas salas com máquinas de jogo têm de pagar até R$ 3 mil semanais para a facção, como "proteção" contra assaltos.
A chefe da Polícia Civil, delegada Nadine Anflor, prefere não analisar o caso de Jonca especificamente, mas admite que existe no Rio Grande do Sul assédio das facções aos donos da jogatina ilegal. E que ameaças de morte variadas têm ocorrido, há anos.
"Me recusei a pagar e tive de fechar", diz dono de bingo
Em 2018, Roberto (que prefere ser assim identificado) montou um bingo no centro de Porto Alegre. Apesar de pequena, a casa de jogos empregava 50 funcionários e faturava cerca de R$ 8 mil por dia.
— Ganhando bem — ressalta o empresário da jogatina ilegal.
Os vendedores, diz ele, recebiam cerca de R$ 3 mil, sustentavam família, conseguiam pagar consórcio de algum veículo, o gerente ganhava R$ 8 mil. Alguns deram entrada em financiamento da casa própria.
O negócio começou a gorar quando uma facção nascida na zona leste de Porto Alegre se apresentou, 15 dias após a abertura do bingo, descreve ele à reportagem de GZH. Queriam R$ 3 mil por semana. Mesmo sendo pequena parte do valor que Roberto faturava, ele decidiu não pagar. Tinha seguranças no bingo. Em vão.
— Entraram no bingo, roubaram. Fizeram depois várias tentativas de nos intimidar, armados. Isso foi ao longo de um ano. Exigiram fazer parte na sociedade. Ameaçaram que a casa de jogos não seria mais minha.
Roberto diz que, com o tempo, teve de fechar o negócio. Ficou devendo equipamentos, pois decidiu não reabrir.
— Hoje os grandes inimigos do governo e do empresário do jogo são as facções. Bastaria legalizar o jogo que a gente poderia pagar impostos, contar com as polícias. Do jeito que está, não dá. E vem mortes aí — afirma Roberto.
Entidades centenárias poderiam explorar quatro modalidades de sorteios. Do contrário, o jogo sairá cada vez mais do controle dos empresários
MARCELO NASCIMENTO
Advogado
Advogado de pessoas investigadas por explorarem jogo ilegal, Marcelo Nascimento diz que legalizar é a solução e existe uma brecha jurídica, a Lei do Turfe (Lei 7.291, de 1984). Num dos artigos, autoriza as entidades promotoras de corridas de cavalos a explorarem apostas e loterias, desde que paguem impostos.
— Entidades centenárias poderiam explorar quatro modalidades de sorteios. Do contrário, o jogo sairá cada vez mais do controle dos empresários e, definitivamente, irá para o braço armado das facções — conclui Nascimento.
Posição oposta tem o procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul, Fabiano Dallazen. Ele diz que assassinatos em acertos de conta da jogatina comprovam que a exploração de jogos de azar envolve muitos outros crimes além da contravenção.
O fato é que o Estado ainda não tem uma estrutura de fiscalização a permitir que o jogo possa existir de forma escorreita
FABIANO DALLAZEN
Procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul
— Há lavagem de dinheiro, facções, e o fato é que o Estado ainda não tem uma estrutura de fiscalização a permitir que o jogo possa existir de forma escorreita, com valores legalmente tributados. A legalização pura e simples seria dar um recibo à criminalidade organizada para continuar atuando, com dano social — opina Dallazen.