Os dois tiros na cabeça do empresário João Carlos Franco Cunha, o Jonca, no último sábado (15), mataram um dos expoentes do jogo no Rio Grande do Sul. Porto-alegrense com 72 anos, que tinha em lotéricas e numa livraria sua parte legalizada de negócios, esse banqueiro do bicho fez carreira à moda antiga. Chefiava o esquema desde o tempo das apostas anotadas em papel, narradas em telefone com fio, honradas a partir da palavra dada e de um bilhetinho escrito à caneta.
Morto ao volante da sua Pajero quando a sinaleira fechou, na Avenida Princesa Isabel, a poucos metros de um bingo que foi de sua propriedade, Jonca era bicheiro-raiz, daqueles que ajudam escola de samba. Durante décadas, apoiou a Estado-Maior da Restinga, a entidade carnavalesca do bairro de onde ele catapultou seu domínio para áreas centrais e bem situadas: Azenha, Menino Deus, Cidade Baixa, Centro Histórico e Bom Fim, entre outros.
A "Tinga", da qual Jonca foi conselheiro, tinha a maior quadra de ensaios da Capital. Foi dali também que surgiu a aproximação do bicheiro com o carnavalesco que era seu empregado numa lotérica, também integrante do conselho da escola de samba e que virou presidente da Associação das Entidades Carnavalescas de Porto Alegre. Mas foi no bicho e no bingo clandestinos que o empresário reinou.
E por que o bicheiro foi morto? Ainda é mistério.
O matador usou um revólver e atacou numa sinaleira, o que dá margem a duas interpretações: ato de profissional, porque esse tipo de arma não deixa cápsulas caírem (e virarem indício), ou apenas um ladrão que se assustou com um gesto da vítima.
O certo é que a jogatina ilegal vive período de instabilidade há uma década. Jonca é o terceiro ex-proprietário da mais conhecida casa de jogos de Porto Alegre, o Bingo Coliseu e Roma, a ser assassinado desde 2012. Pode ser mera coincidência — ou a origem do problema, admitem pessoas que trafegam no mundo do jogo.
Um dos maiores e mais conhecidos do Rio Grande do Sul, o Bingo Roma (hoje rebatizado de Coliseu e Roma) passa mais tempo com as luzes da fachada apagadas do que ligadas em decorrência da clandestinidade. Um dos últimos períodos de legalidade aconteceu em 2017. Na época, ao reabrir formalmente mediante decisão judicial provisória, recebia 2 mil clientes por dia. Contava com cem máquinas caça-níqueis e 70 empregados. Números que explicam por que é um negócio ambicionado. Fechado naquele mesmo ano por ações policiais, permaneceu abrindo e cerrando portas eventualmente, mediante liminares judiciais.
O primeiro assassinato de administrador do Bingo Roma aconteceu em 26 de junho de 2012 e vitimou um dos sócios, Marco Aurélio Guimarães Assmus, 59 anos. Ele foi morto de dia, com três tiros, enquanto almoçava num restaurante ao lado da casa de jogos. O atirador chegou na carona de uma moto, disparou com uma pistola calibre 9mm e fugiu no mesmo veículo. Até hoje, esse crime não está elucidado.
Em 14 de setembro de 2015, a morte alcançou Eduardo Henrique Mesquita Bilbau, 36 anos, que tinha sucedido Assmus na gerência do Bingo Roma. Ele foi assassinado com um tiro no rosto, à noite, enquanto caminhava com a mulher e filhos nas proximidades da casa de jogos. O atirador chamou a vítima pelo nome e disparou, fugindo depois. Dois homens em carros esperavam o assassino.
O curioso nesse caso é que Bilbau era uma das pessoas investigadas no caso do assassinato do seu ex-sócio Assmus. Teve sua quebra de sigilo telefônico solicitada na 2ª Vara do Júri de Porto Alegre porque ele e Assmus teriam se desentendido na disputa por uma empresa de jogos eletrônicos. Antes de ser interrogado pela Justiça a respeito da morte do sócio, Bilbau também foi morto. Outra hipótese aventada pela polícia é vingança de facção do tráfico.
Enquanto a morte de Assmus permanece sem solução, o assassinato de Bilbau é considerado esclarecido pela Polícia Civil. Ele teria sido morto por um grupo de traficantes da zona norte de Porto Alegre. Integrante do bando, o atirador fazia serviços eventuais no bingo. Esse homem acumula antecedentes por roubo, tráfico e receptação. Ao ser preso, alegou desavença com Bilbau, mas a polícia aponta crime de encomenda. O Ministério Público pediu a prisão preventiva de suspeitos, mas a medida não foi concedida pela Justiça.
O terceiro ex-administrador do Roma assassinado é Jonca. Ele estava formalmente afastado daquele bingo desde 2008 e até montou outra casa de jogos que funcionava atualmente, mas há possibilidade de que fosse ainda visto como concorrente. A investigação tenta checar se havia rixa entre Jonca e rivais de jogatina ou se a motivação da sua morte é outra. A chefe do Departamento de Homicídios da Polícia Civil, delegada Vanessa Pitrez Corrêa, diz que o caso aconteceu há poucos dias e apuração é intensa, mas recém começou.
Destaque entre os 13 banqueiros, a jogatina e o samba
João Carlos Franco Cunha, o Jonca, era um dos últimos integrantes vivos do chamado Clube da Sorte ou Clube dos 13 (número de membros que tinha): a união dos principais banqueiros do bicho na Capital. Quase todos eram donos de casas lotéricas, mas ganhavam dinheiro mesmo era com o jogo do bicho, apelidado "loteria dos pobres".
Apesar de a atividade ser clandestina, os banqueiros da jogatina ilegal eram tão populares que tinham até sede. A Associação dos Bicheiros de Porto Alegre funcionou durante décadas no bairro Menino Deus, num sobrado de dois andares onde eram realizados sorteios diários da Loteria da Sorte (nome oficioso do jogo do bicho). Não funciona mais ali desde os anos 1990, quando a polícia fez tantas apreensões de documentos e dinheiro e prendeu apontadores que deixou de ser interessante a eles se reunirem ostensivamente.
Foi em 27 de abril de 1994 que a Polícia Civil desencadeou a maior operação da história gaúcha contra o Clube da Sorte. Em meio a apreensões de dinheiro, talões de apostas e 12 detidos, todos os 13 banqueiros de Porto Alegre foram levados para depor. O delegado que comandou a operação, Alexandre Vieira, continua na ativa e recorda a reação dos bicheiros.
— Todos admitiram a contravenção. Não teve reação, estavam acostumados com polícia na porta desde jovens. Estávamos atrás de provas de envolvimento com homicídios ou tráfico, no rastro do que acontece no Rio de Janeiro, mas isso não foi flagrado na época — descreve Vieira.
Jonca, por exemplo, admitiu que explorava 150 pontos de apostas clandestinas no Centro e na Cidade Baixa, empregando 180 pessoas. Ele já tinha respondido duas vezes por contravenção penal e, em 1994, respondeu a terceira. Nunca esteve na cadeia por isso, já que a jogatina é contravenção penal e a prisão (de três meses a um ano) costuma ser transformada, pelos juízes, em prestação de serviços, com pagamento de multa.
Jonca tinha fama nacional. No relatório final da CPI dos Bingos, feita pelo Senado em 2004, ele foi foi definido como "um dos banqueiros do jogo do bicho mais influentes de Porto Alegre, ligado à maior banca da cidade. Ela controla pontos de apostas no centro de Porto Alegre, segundo informações da Polícia Civil".