O Rio Grande do Sul mais do que dobrou a quantidade de registros de armas novas efetuados pela Polícia Federal (PF) em 2020 na comparação com o ano anterior. O total saltou de 8.258, em 2019, para 19.043 — aumento de 130,6% em um ano. Ou seja, a média foi de 52 registros de posse de armamentos autorizados por dia, o que coloca o Estado em segundo lugar no ranking de 2020 no país. O incremento segue tendência nacional. As medidas de flexibilização das exigências e ampliação dos calibres permitidos, por iniciativas do governo federal, num cenário em que parte da população aguardava por isso, são apontadas como principais fatores para o crescimento.
Facilitar o acesso às armas para a população era promessa de campanha eleitoral do presidente Jair Bolsonaro. Com a vitória, o novo governo conseguiu emplacar alterações que facilitaram os registros de armas, especialmente as recém-adquiridas. No Brasil, houve aumento de 91,1% nos registros em 2020 na comparação com o 2019. O país terminou o ano passado com 179.771 autorizações de posse concedidas pela PF, enquanto em 2019 foram 94.064. Antes do início do governo Bolsonaro, esse número no país era de 51.027, em 2018. Em dois anos, os registros mais do que triplicaram.
Para o advogado e coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), Fabricio Rebelo, a maior parte dessa demanda é gerada por novos proprietários.
— A causa principal é sem dúvidas a demanda reprimida muito forte. A regulamentação do Estatuto do Desarmamento, como vigorou até 2018, transformou o que seria um direito em uma concessão pela PF de modo subjetivo. Este aumento começou efetivamente em 2018 quando tivemos a primeira alteração normativa, ainda no governo de Michel Temer (então presidente) — avalia.
O advogado se refere às mudanças no governo Temer que ampliaram, por exemplo, a validade da licença para o porte de armas para civis de três para cinco anos. Sobre a demanda da população, Rebelo recorda o resultado do referendo realizado em 2005, no qual 63,9% da população disse "não" à proibição do comércio de armas no país. No RS, 87% dos eleitores votaram contra a proibição — a mais expressiva rejeição no país.
Gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi considera a tendência preocupante:
— O governo federal estimula essa falsa sensação de segurança ao invés de cumprir sua função de oferecer segurança pública para a população. Esse desejo de possuir armas vem em geral da falsa impressão de que aquilo vai dar segurança. Mais armas, geram mais violência.
Mudanças
Entre as medidas do governo Bolsonaro, estão alterações sobre a comprovação da necessidade de ter arma.
A tendência de reagir a crimes é extremamente perigosa. O criminoso em geral procura o momento de distração da vítima, ou quando ela está com a família, não vai surpreender quando estiver pronta para reagir. Isso pode fazer com que o crime de roubo, já é grave e traumático, acabe em um latrocínio
NATÁLIA POLLACHI
Instituto Sou da Paz
— Antes, a pessoa tinha de apresentar documentos que fundamentassem a justificativa. Se morava em local que não tem posto policial próximo, se a casa já havia sido assaltada. A interpretação da justificativa foi alterada. Antes as pessoas comuns podiam comprar até seis armas, mas para cada adicional tinha que apresentar justificativa. Agora, pode obter até quatro armas, sem precisar justificativa adicional para cada uma — comenta Natália.
Rebelo avalia que o governo restabeleceu um direito previsto pelo próprio Estatuto do Desarmamento, mas que antes dependia de análise subjetiva da PF.
— O estatuto distingue posse e porte e estabelece que para posse só é necessário declarar efetiva necessidade. Para porte de arma aí é necessário comprovar efetiva necessidade. Mas a regulamentação em 2004 igualou as duas coisas. Tanto para posse e porte se passou a exigir comprovação da efetiva necessidade. A partir do momento que legislação acabou sendo alterada (em 2019), estamos cumprindo o que está no estatuto. Passa a ser direito objetivo. Isso levou a essa corrida às armas — diz o advogado.
Divergências sobre o efeito
O impacto na segurança, em crimes como homicídios, feminicídios e latrocínios, é um dos pontos que centraliza o debate sobre a flexibilização nos registros de armas. Em 2020, o RS teve mais uma vez redução na criminalidade — nos homicídios o Estado alcançou a menor taxa por 100 mil habitantes dos últimos 11 anos, com 14,8. A diminuição nos assassinatos foi de 1.811, em 2019, para 1.694 no ano passado, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP). Fabricio Rebelo entende que mais armas não geram mais crimes como assassinatos.
Em alguns casos jamais vai dar certo reagir, em outros será possível. E terá casos em que reagir será a única forma de o cidadão, preparado e treinado, conseguir se desvencilhar. Tudo depende das circunstâncias. É muito subjetivo. Não se pode estabelecer um comportamento padronizado para as ações
FABRICIO REBELO
Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes)
— Essa relação foi artificialmente construída, mas os últimos anos vêm demonstrando isso de modo claro. O RS vem com duas quedas acentuadas de crimes — diz.
Já a gerente de projetos do Instituto Sou da Paz afirma que não é possível creditar o aumento do armamento à redução dos homicídios, resultado de outras políticas de segurança e fatores como o distanciamento social. Ela considera que efeitos do maior acesso às armas só serão percebidos nos próximos anos.
— Homicídios podem estar caindo, mas precisamos analisar se o emprego da arma de fogo não está aumentando. Esse impacto não é instantâneo — afirma Natália.
Pontos de vista
A FAVOR
Fabrício Rebelo é advogado, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes). É autor do livro "Articulando em Segurança: Contrapontos ao Desarmamento Civil"
- Há uma demanda da população brasileira pelo acesso às armas
- Mesmo com mais registros de armas, os indicadores de criminalidade vêm caindo
- O cidadão treinado e armado pode ser capaz de analisar se deve reagir
- Trata-se de direito individual e não uma política de segurança pública
CONTRA
Natália Pollachi, mestre em relações internacionais, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz. Desde 2013, desenvolve pesquisas e propostas de políticas públicas voltadas à segurança
- Armas geram falsa sensação de segurança, mas resultarão em mais crimes
- Parte deste arsenal pode ser roubado das residências e acabar abastecendo mercado ilegal
- Reagir pode colocar em risco a vida da pessoa e de outros.
- Estimular a população a se armar é uma forma do governo se eximir de suas obrigações
Fique sabendo
Também conhecido como posse de arma, o registro concedido pela PF é o documento, válido por 10 anos, que autoriza o proprietário da arma de fogo a mantê-la em sua residência ou local de trabalho, exclusivamente. É uma autorização diferente do porte, que possibilita ao cidadão andar armado. Existe ainda uma outra categoria, que permite a aquisição de armas. São os caçadores, atiradores e colecionados (CACs) — estes não precisam se credenciar na PF. A autorização, neste caso, é concedida pelo Exército.