As estatísticas recentes decepcionaram quem esperava redução maciça da violência no país em decorrência do isolamento populacional durante a pandemia de coronavírus. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, o mais completo deste ano, divulgado no início da última semana, mostra que os principais indicadores de crimes violentos cresceram no primeiro semestre, no pico da covid-19. Mas o Rio Grande do Sul está na contramão dessa tendência, como o leitor pode conferir nos gráficos publicados abaixo.
Os homicídios dolosos (intencionais), por exemplo, tiveram crescimento de 8,3% no Brasil em relação ao primeiro semestre de 2019. Já no Rio Grande do Sul tiveram redução de 6,9%. O número de mortes decorrentes de ações policiais aumentou 6 % no semestre passado no país. Em território gaúcho, esse tipo de ação teve queda de 23,1%. E o número de policiais assassinados? No Brasil, aumentou 19,6%. No Estado, nenhum policial foi assassinado no semestre passado, contra três no mesmo período em 2019, segundo o Anuário.
Do ponto de vista estatístico para esse tipo de análise, meio ano é pouco. Porém, se recuarmos mais um tanto no tempo, em uma análise do biênio 2018-2019, as diferenças se ampliam. Os feminicídios aumentaram 7,9% no país naquele período e recuaram 16,4% no Rio Grande do Sul. A lesão corporal em violência doméstica (via de regra, tendo mulheres como vítimas) seguiu a mesma tendência: aumento de 7,2% no Brasil, recuo de 4,1% em território gaúcho. Ameaças a mulheres, idem: aumento de 12,3% no país, recuo de 0,7% no Estado.
As polícias, fora do Rio Grande do Sul, têm atuado com violência três vezes maior, a julgar pela taxa de mortes decorrentes de ações policiais. Em 2019, esse indicador foi de três mortos por 100 mil habitantes no país. No Estado, foi de um morto para cada 100 mil habitantes.
Cientistas não costumam trabalhar com prazos curtos. É preciso uma série histórica para se verificar se recuos e aumentos nas estatísticas são uma tendência ou apenas um retrato do momento. O Banco Mundial recomenda três anos como prazo razoável para estabelecer um padrão. E, em termos de violência, o maior indicador é o homicídio doloso (intencional). Em 2017, a taxa, foi 30,9 mortes por 100 mil habitantes no país. E, desde então, recuou: 27,6, em 2018; 22,7, no ano passado. Um grande feito, mas que foi agora empalidecido pela volta do crescimento no número de homicídios no primeiro semestre de 2020. A alta é puxada, sobretudo, pelos Estados do Nordeste.
Já no Rio Grande do Sul o recuo se consolidou. A taxa de homicídios foi de 27,7 por 100 mil habitantes em 2017, baixou para 21,9 em 2018 e despencou para 16,8 no ano passado – um dos menores índices do país. Mais ainda: o número de homicídios em 2020 continua caindo em território gaúcho. Em agosto, Porto Alegre ficou nove dias sem homicídios, algo que não acontecia desde 2015.
A reportagem de GZH ouviu especialistas e operadores da segurança pública com distintas visões para analisar por quais motivos o Rio Grande do Sul mantém uma tendência de redução da violência, algo que parece não ter se consolidado no país como um todo. Curiosamente, nenhum dos consultados mencionou uma quarentena mais drástica, no Rio Grande do Sul, como possível motivo para a menor violência no Estado.
Alguns dos fatores que todos os consultados admitem como plausíveis:
- Cercamento eletrônico: rede de câmeras que permite localizar veículos envolvidos em irregularidades. É cada vez maior o número de criminosos localizados e capturados dessa forma.
- Isolamento de líderes de facções: vários deles foram enviados a prisões federais de segurança máxima em outros Estados, mesmo que a medida encontre resistência dentro do Judiciário.
- Investigação focada no combate à violência: o investimento em dezenas de Delegacias de Homicídios é elogiado pela esquerda e pela direita.
- Pacto de não agressão entre facções: há indícios de que lideranças de bandidos traçaram divisão territorial para otimizar negócios do submundo e diminuir incidência de homicídios (porque eles atraem repressão das autoridades).
Consultor de assuntos de criminalidade do Instituto Fernand Braudel, mestre em Psicologia Social, coronel da reserva da Polícia Militar paulista e ex-secretário nacional da Segurança Pública, José Vicente da Silva Filho é um dos que acreditam na soma desses fatores para explicar o fenômeno. Ele imagina que o Rio Grande do Sul pode estar a caminho de uma redução de criminalidade similar à vivenciada por São Paulo e Santa Catarina nos últimos anos, com redução prolongada de homicídios e da letalidade das ações policiais. Só que esses dois Estados vivenciaram aumentos de assassinatos no último semestre (8% e 14%, respectivamente), enquanto o Rio Grande do Sul continua com esse indicador em queda.
Silva Filho diz que a Brigada Militar gaúcha tem o principal papel nesse processo, porque o controle principal das ruas é da polícia uniformizada. A investigação constitui trabalho complementar no processo de segurança. Ele afirma que, em São Paulo, progressos cumulativos na PM (distribuição racional de efetivos, tecnologias avançadas, treinamento de qualidade dos policiais) foram determinantes na queda constante de homicídios registrada nos últimos 15 anos.
Outro professor especializado em violência é mais cauteloso nesse entusiasmo. O sociólogo José Vicente Tavares dos Santos, docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atuante em vários grupos de trabalho sobre violência e segurança, admite que os investimentos em delegacias de homicídios e melhoria no gerenciamento das organizações policiais podem ter ajudado a reduzir o número de mortes dolosas.
– Porém, a violência doméstica manteve números preocupantes, ainda mais que, em 2020, houve subnotificação de ocorrências. Aumentaram, no país, as mortes ocorridas em enfrentamentos e o chamado “encontro de cadáveres”, ou seja, mortes que ainda estão por esclarecer. Também aumentou, no Rio Grande do Sul, o registro de armas de fogo entre particulares. Qual seria a intenção, para além de uma cultura de fronteira? Os números são provisórios e exigem cautela nas análises – ressalva Tavares.
O jurista Fabrício Rebelo, pesquisador de segurança pública e coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), considera natural o aumento de homicídios, porque o país vem de dois anos de quedas acentuadas nesse tipo de crime: 12,3% em 2018 e 23% em 2019.
– O aumento de mortes no semestre passado, de 7,1%, não é muito alto se comparado à redução de 35% nos dois anos anteriores. Somem-se a isso as contingências geradas pela pandemia, como a soltura de presos e as restrições às operações policiais, que geraram picos de criminalidade em diversos pontos do país. O aumento de homicídios é consequente – compara Rabelo.
O sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e um dos fundadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que produz o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, atribui os números crescentes do país em 2020 a fatores variados. Um deles é o acirramento de disputas entre facções e os rearranjos nos mercados ilegais no contexto da pandemia. Outro, específico do Ceará, o aumento de quase 100% nas mortes após a greve das polícias, período em que houve muitos homicídios por acerto de contas e disputas de mercado no submundo sem a mediação da polícia.
No caso específico do Rio Grande do Sul, Azevedo atribui parte da redução dos homicídios a políticas que vêm sendo implementadas pelo atual governo, especialmente o RS Seguro, além de estratégias de segurança adotadas pelos governos municipais. Mas não só isso. As facções teriam papel importante nessa redução dos homicídios, pela tendência que mostram de acomodar suas disputas, sobretudo na Grande Porto Alegre.
– Chegamos ao fundo do poço num determinado ponto, e, agora, vemos o retorno a uma certa normalidade – analisa Azevedo, em uma referência ao “festival” de decapitações e chacinas registrados até 2017 no Rio Grande do Sul.
O sociólogo crê que o Brasil deveria ter continuado com um ministério da Segurança Pública, como ocorreu no governo Michel Temer.
E o que é o RS Seguro, mencionado pelo sociólogo Azevedo? O secretário da Segurança Pública, Ranolfo Vieira Jr., que é delegado da Polícia Civil, ressalta que consiste basicamente na análise de 10 anos de crimes, análise esta que apontou que 73% das mortes violentas aconteciam em 18 dos 497 municípios do Estado. Essas mesmas localidades concentram 88% dos roubos de pedestre e 89% dos roubos de veículos.
Como há territorialidade dos crimes, a aposta foi na integração das diversas forças policiais, por meio da Gestão Estatística de Segurança Pública, inspirada em modelo de Nova York (EUA). Ela promove reuniões mensais em quatro níveis dos comandos das polícias e do Instituto Geral de Perícias (IGP), agora situados nas mesmas áreas regionais. Analisa o que é feito em cada bairro e nos municípios como um todo e no que podem melhorar, inclusive com a presença do governo estadual. Quem consegue reduzir as estatísticas da criminalidade apresenta aos colegas as suas boas práticas.
– Quando há mudança no ranking dos municípios, são aumentados o monitoramento e as reuniões nesses locais. E, mesmo com pandemia e os salários parcelados há mais de cinco anos, os policiais não param. Tudo isso apoiado na compra de centenas de novas viaturas e milhares de coletes balísticos e armas – enumera Ranolfo.
O secretário comemora que, com ampliação do número de batalhões de choque da Brigada Militar e com a mobilidade constante das patrulhas deles, praticamente acabou no Rio Grande do Sul o chamado Novo Cangaço – como vinha sendo classificada a prática do assalto bancos com reféns.
Sobre o comércio de armas e a criminalidade
A controvérsia está posta entre aqueles que se dedicam a analisar a criminalidade quando se trata de correlacionar a venda de armas e os índices de criminalidade. O debate foi aquecido nos dois últimos anos, quando o número de homicídios registrados no Brasil, que é o principal indicador de violência, caiu significativamente: 10,4% em 2018 e outros 20,3% em 2019.
E isso aconteceu em meio à maior explosão de venda de armas que o país já viu. Para dar uma ideia: foram 9 mil armas novas registradas pela Polícia Federal no primeiro semestre de 2010 (governo Dilma Rousseff) contra 24 mil no primeiro semestre de 2019 (governo Jair Bolsonaro) e 73 mil no primeiro semestre de 2020 (também Bolsonaro). São quase nove vezes mais armas registradas em um período de 10 anos.
Em resumo, o país teve mais armas circulando e menos assassinatos nos dois últimos anos. Mas não eram as armas as culpadas pelos homicídios, afinal?
Os adeptos do armamento para a defesa pessoal comemoravam até dias atrás, quando a nova estatística surgiu: os homicídios voltaram a aumentar no primeiro semestre deste ano: 7%. Algo que os defensores de direitos humanos atribuem, em parte, à maior circulação de armamento legalizado.
Será? GZH perguntou aos especialistas citados nesta reportagem: há relação entre o número de homicídios e a venda de armas ou não? Confira as respostas:
- Fabrício Rabelo, advogado e coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes): “Esses dados evidenciam, mais uma vez, a inexistência de qualquer relação entre a circulação legal de armas e o número de homicídios. Já é o terceiro ano seguido de aumento nas vendas de armas e, no acumulado do período, mesmo considerando os 7% de elevação de mortes em 2020, estamos com os homicídios em uma queda de 28% em relação a 2017. Isso elimina a tese de que a venda legal de armas aumenta as mortes”.
- Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, sociólogo e professor da PUCRS: “Acredito que não se possa fazer correlação entre estatísticas de venda de armas e homicídios em tão pouco tempo. Mas me parece evidente, em pesquisas realizadas com contextos mais amplos, que mais armas em circulação tendem a aumentar a letalidade de conflitos cotidianos. Por outro lado, mais vendas dificultam uma política de controle e recolhimento de armas pela polícia. Mas é preciso acompanhar a longo prazo. Armas na mão de milícias podem reduzir violência letal em curto prazo, pela ‘pacificação’, mas aumentar no longo prazo".
- José Vicente Tavares dos Santos, sociólogo, professor da UFRGS: “Chama a atenção a posse de armas por particulares. O que leva a isso? Cultura da fronteira? Machismo? Pode haver uma intenção política. Milícias? Acho que pode ser por aí”.
- José Vicente da Silva Filho, coronel da PM aposentado, professor e analista de segurança: “Existem dois aspectos. O Rio Grande do Sul é um Estado com muita arma, tem cultura de campo. Isso talvez não afete tanto nos homicídios. Já no Nordeste, quando a venda de armas cresce, a violência explode. É cultural. O outro aspecto é que o crescimento da venda de armas impacta a longo prazo, porque dentro de algum tempo são roubadas e param na mão de bandidos. Pesquisas internacionais indicam que 1% a mais de armas na mão da população impactam, no futuro, em 1% a 2% a mais de homicídios”.
- Ranolfo Vieira Jr., secretário da Segurança Pública do Rio Grande do Sul: “Numa análise muito superficial, não arrisco uma relação direta entre armas e homicídios. O Rio Grande do Sul é um dos Estados em que mais o cidadão adquire armamento. Mas a maioria dos homicídios envolve criminosos ligados a facções, que não compraram armas em lojas e, em grande parte das vezes, usam armas de calibre restrito ou proibido”.