Um sofisticado esquema de falsificação de medicamentos que envolvia inclusive empresas de fachada foi desarticulado pela Polícia Civil gaúcha. A ação, realizada pela Delegacia de Proteção ao Consumidor da Polícia Civil (Decon), resultou na prisão de cinco pessoas envolvidas na produção e na distribuição de remédios fraudulentos para tratamento de câncer a pacientes do Rio Grande do Sul.
A investigação teve início em fevereiro de 2018, quando a Unimed Porto Alegre adquiriu três caixas do medicamento quimioterápico Sutent 50mg (sunitinibe malato), supostamente falsificado, pelo valor de R$ 38,6 mil (mais de R$ 12 mil por unidade), da distribuidora House comércio de medicamentos.
O fármaco foi ministrado a três pacientes em tratamento contra o câncer, que não notaram melhora com o tratamento.
Uma das pacientes percebeu características estranhas nas embalagens: caixa com erros de português, bula com manchas e rasuras, frascos com fundo raspado. Notou também que o conteúdo das cápsulas estava vazando e percebeu uma coloração diferente. Ela desconfiou também da ausência de efeitos colaterais, visto que já havia ingerido diversas cápsulas.
Diante disso, as três embalagens do produto foram apreendidas pela Decon, que solicitou perícia ao Instituto-geral de Perícias e ao fabricante do medicamento Sutent 50mg, o laboratório Pfizer.
A Pfizer elaborou laudo que aponta inúmeras divergências nos produtos submetidos à análise, tanto na embalagem quanto na composição. Na embalagem, foram constatados erros na forma de escrita e na pontuação utilizada na caixa do medicamento original. No que tange à composição, os analistas constataram presença de diversos tipos de vitaminas B. Ou seja: não havia o medicamento sunitinibe malato nos produtos apreendidos. Foi detectada apenas a existência de complexos vitamínicos misturados a outras substâncias, sem qualquer eficácia contra o câncer.
Análise feita pelo Instituto-geral de Perícias (IGP) foi no mesmo sentido. Apontou que as gravações realizadas nas caixas, nos rótulos dos frascos, bula e selos de segurança, foram impressas de maneira divergente da amostra padrão. O tamanho dos frascos questionados (4,8 cm de largura e 6,8 cm de altura), diverge da amostra original. Nos frascos tampa rosca, foi constatado que não havia o lacre de segurança para crianças. Na base dos frascos, existem evidentes sinais de raspagem de informações obrigatórias para esse tipo de medicamentos, sendo, portanto, falsos.
Os especialistas do Departamento de Perícias Laboratoriais, também do IGP, apontaram, em análise da composição, que o conteúdo dos medicamentos apreendidos pela Polícia Civil é quimicamente incompatível com o conteúdo do material da amostra padrão, que contém sunitinibe malato.
— Estamos diante de um crime gravíssimo, já que os doentes usaram o medicamento pensando que iriam melhorar e ele não fez efeito — constata o delegado Joel Wagner, da Decon.
Até pelo agravante de falsificarem medicamento para pacientes com doença grave, os envolvidos vão responder por associação criminosa qualificada, que prevê pena de três a seis anos de reclusão.
A ação, denominada Operação Subtinibe, contou com apoio do procurador Alcindo Bastos, da Procuradoria Especializada do Consumidor. Mais de 30 policiais atuaram em São Paulo e no Piauí, locais onde a quadrilha fabricava o medicamento falso, com apoio das polícias civis desses dois Estados. Depósitos com os remédios falsificados foram encontrados em São Paulo, São Caetano do Sul e Cotia (todas em SP).
Foram presos empresários pertencentes ao quadro societário e colaboradores de empresas do ramo de medicamentos, suspeitos de envolvimento com a falsificação e a distribuição de medicamentos falsos para tratamento oncológico.
No Rio Grande do Sul, não se tem notícia sobre a morte de pacientes que fizeram uso do medicamento Sutent 50mg falsificado. Mas o delegado Joel Wagner destaca que, em Goiás, policiais civis investigam quatro mortes de pacientes que usaram essa medicação, sendo uma já confirmada, inclusive com pessoas responsabilizadas criminalmente.
A pedido da Polícia Civil e do MP, a Justiça decretou a prisão de seis pessoas, sendo que uma delas continua foragida. Duas foram localizadas em São Paulo e três no Piauí.
As investigações apontam que a distribuição de medicamentos falsos foi feita pela House Medicamentos, de São Paulo, que sucedeu a Milani Comercial Farmacêutica. Quando a Milani deixou de existir, repassou estoque de produtos para a House. O quadro de sócios e de funcionários dessas empresas, segundo Joel Wagner, coincide. Elas inclusive funcionavam no mesmo endereço e tinham o mesmo telefone para realizar as vendas dos medicamentos. Dentre os cinco presos na ação policial estão dirigentes das duas empresas.
Em dois anos, a House vendeu R$ 3,8 milhões em remédios, enquanto que a Milani vendeu um total de R$ 9,3 milhões para todo o Brasil. A desconfiança é de que parte seja de medicamentos falsificados, como os apreendidos agora. O Sutent 50mg falsificado foi vendido para Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Pernambuco e Paraná.
—Trata-se de um crime hediondo e de uma crueldade exacerbada, pois pacientes com câncer de vários Estados do Brasil adquiriram um medicamento bastante caro, cerca de R$ 12 mil o frasco com 28 cápsulas, totalmente ineficaz. Isso fez com que muitas delas, já abaladas pela doença, perdessem confiança no tratamento.
Os presos responderão pelos crimes previstos no artigo 273 do Código Penal (falsificação de medicamento, crime hediondo, pena prevista de 10 a 15 anos de reclusão), crime contra a relação de consumo (Lei 8.137/90, com pena prevista de detenção de dois a cinco anos) e artigo 288 do Código Penal (Associação criminosa, com pena prevista de reclusão de um a três anos). Os nomes dos presos não foram divulgados em decorrência da Lei de Abuso de Autoridade.
A Decon disponibiliza para queixas o Disque-denúncia: 0800-510 2828 e também, para o mesmo fim, WhatsApp e Telegram: (51) 98444-0606.
Contrapontos
O que dizem os responsáveis pela Milani e pela House:
GaúchaZH tentou contato com as duas distribuidoras, mas ninguém atende os telefones. Os sócios de ambas empresas estão entre os presos na operação policial.