O ônibus 2387, linha A17 da Viação Belém Novo, desce a Avenida Dr. João Dentice, coração da Restinga Velha, zona sul de Porto Alegre. Há cerca de 60 passageiros a bordo, a maioria crianças e adolescentes, estudantes das escolas José do Patrocínio e Vereador Carlos Pessoa de Brum. O ambiente é de burburinho: risadas, falação algum empurra-empurra. São 13h8min, faltam dois minutos para a parada final. Sons de metralhadora explodem.
—Todo mundo pro chão — grita um pai, espremido contra a roleta do veículo.
É sexta-feira, 29 de março. O A17 está no meio do tiroteio entre facções no bairro, o terceiro mais populoso da Capital, com 51 mil habitantes. Sias, o cobrador, havia pressentido a tensão um pouco antes, quando o ônibus cruzara a esquina da Rua Coliseu. Uma mulher com uma criança no colo correu na direção do veículo e atirou-se na grama, na tentativa de se proteger.
— Ih, meu! Não tá boa a coisa aí pra frente — avisou ao motorista.
Logo, o 2387 estava no meio do fogo cruzado.
— Sai, meu! Sai, meu! — gritou.
Com o ônibus cheio de estudantes e pais, os dois funcionários pensaram rápido: se abrissem as portas do coletivo, alguém poderia sair e ser atingido por um tiro. O motorista arriscou uma manobra. Colocou a cabeça para fora da janela e deu ré. Andou assim por três quadras.
— Passou uma bala zunindo pelo meu ouvindo — lembrou, horas depois, quase chorando.
Sias e o motorista só foram largar os passageiros perto da quadra da escola de samba Estado Maior da Restinga, a meio quilômetro da parada pretendida.
Nesta terça-feira (2), GaúchaZH acompanhou, a bordo do ônibus 2387, o trajeto de sete minutos em que o veículo circula pelo bairro que é epicentro da guerra do tráfico na zona sul de Porto Alegre. Assim como na sexta-feira, o veículo estava lotado de crianças e pais. Havia o mesmo burburinho. Enquanto Sias lembrava os momentos de pânico, um menino de oito anos observava, com olhos arregalados, a descrição.
— Tinha um cara com uma arma desse tamanho dando tiro — apontou o cobrador para um muro baixo, de onde um dos criminosos disparava.
Ao descer do veículo, o menino comentou com o colega:
— É cara, tu tem de se proteger. Tu vê, a gente sai aí na rua, e tem tiro. A gente tem de se abaixar.
Frases como essa comovem professores, inconformados com a realidade de violência do bairro que, há dias, é palco de sucessivos tiroteios entre grupos que disputam pontos de tráfico de drogas.
— Fico chateada de ver essas cenas: criança não é pra ver isso — lamenta uma professora.
A preocupação é de todos. Pela manhã, ela mesma recebera um telefonema da filha:
— Mãe, onde tu estás?
— Estou no trabalho — respondeu.
— O quê? — indignou-se a jovem. — Que tu estás fazendo aí? Não é pra tu ficar. Prepara os teus currículos pra distribuir por aí, porque aí tu não vais trabalhar mais — disse a jovem.
A escola permaneceu fechada na segunda-feira, quando havia promessas de novos confrontos. Na terça-feira, funcionou normalmente. Perto dali, uma vice-diretora passou a manhã atendendo aos telefonemas de pais.
—Tem segurança? Tem policiamento? — queriam saber.
— Sim, aula normal — respondia.
Colado à parede da sala, havia um cartaz:
"Código Penal Brasileiro
Art.331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena — detenção, de seis meses a dois anos ou multa."
Questionada sobre a razão do aviso, a professora explicou:
— No início do ano, um aluno chamou uma professora de vagabunda e disse que ia trazer um fuzil e metralhar todo mundo.
Poucos moradores falam com jornalistas. Só aceitam conversar diante de garantias de que seus nomes não serão revelados. Também não querem fotos. Mãe de seis filhos e grávida de cinco meses do sétimo, uma mulher explica a logística do conflito. A Restinga Velha é como um território retalhado pelo medo: rua a rua, esquina a esquina.
— A gente não pode passar por lá porque a facção não deixa — aponta ela para uma quadra. — Na sexta-feira, vieram até aqui tiroteando.
Um homem passa por nós, escuta parte da conversa e se dirige à mulher:
— Olha a boca! Não fala demais.
Outro homem, de 72 anos, chega à Unidade de Saúde Restinga, na Rua Abolição. Havia marcado consulta com clínico-geral para as 13h. Tem pressão alta. Nos últimos dias, não baixa da faixa dos 17 por 10.
— Vou em casa buscar os documentos — alegra-se, ao ouvir rumores de que, nesta terça-feira, o posto abrirá as portas.
Ao retornar, descobre que a informação não passa de boato. A unidade ficou fechada pelo segundo dia. Rumores, aliás, colaboram para o clima de insegurança. Enquanto o paciente lia o aviso sobre o fechamento do local, pelo WhatsApp, outros moradores recebiam uma mensagem nos grupos da comunidade: "Não é para usar camiseta de time nem boné".
— Eles acham que é vagabundo e vão executar — explica a moradora.
Quem mora na Restinga aprende a ler os sinais: se há um grupo de homens em uma esquina, algo ruim vai acontecer. Antes, os confrontos ocorriam ao cair da noite. De tempos para cá, não há hora. Às 7h45min, por exemplo, quando pais levam seus filhos às escola, é um dos momentos mais tensos.
— As mães chegam enlouquecidas, porque eles (as facções) já estão se combinando que, mais tarde, vai ter isso ou aquilo — conta uma mulher.
Outro sinal do acirramento da violência: os acertos de contas costumavam ocorrer no interior do bairro, não em locais de maior movimento, como a Estrada João Antônio da Silveira, conhecida como "a faixa". A via, a principal do bairro, divide a nova da velha Restinga:
— Era uma zona mais neutra. Mas, desta vez, aconteceu lá.
"Aconteceu" é o verbo utilizado pelos moradores quando querem se referir a um assassinato. No sábado (30), um jovem chegou a uma farmácia e pediu para usar o Wi-fi do estabelecimento. Foi informado de que não tinham a senha. Ao deixar o local, foi alvejado. Cruzou a "faixa" e morreu do outro lado da avenida. O homicídio, por volta das 19h30min, ocorreu perto da gôndola onde uma funcionária costuma organizar os produtos ao final do dia. Naquele sábado, ela saíra mais cedo, às 15h25min.
— Todos se atiraram no chão — conta uma colega, de 26 anos.
Diariamente, ela percorre o trecho entre a loja e a creche para buscar o filho de dois anos, perto do local do primeiro tiroteio. É comum caminhar na escuridão, porque as facções eliminam as lâmpadas ou fios dos postes:
— Nem Uber está vindo nesses dias.
Outro comerciante, que vive há 20 anos no bairro, percebe o recrudescimento da violência. À época, quando decidiu se mudar de Ipanema para a Restinga, ouviu das filhas adolescentes:
— Tá louco!
— Nem conhecia o bairro. Vim em prol da profissão — conta.
Hoje, de sua residência, costuma ouvir tiroteios frequentes. Já viu gente ser morta na frente da loja onde trabalha. Mesmo assim, não pretende se mudar de novo.
— O bairro tem tudo para ser tranquilo, basta alguém tomar uma decisão sobre a segurança e essa gurizada ter um crescimento diferenciado. Na minha época de guri, a gente resolvia as coisas, no máximo, no soco. Hoje, é na bala.