Nesta quinta-feira (1º/2), completam-se três anos desde que a família Maicon Doglas de Lima teve de aprender a conviver com a ausência. Em 1º de fevereiro de 2015, o torcedor do Novo Hamburgo, então com 16 anos, foi assassinado com dois disparos pelas costas após uma confusão entre torcidas de futebol, dispersada pela Brigada Militar (BM) no bairro Santos Dumont, em São Leopoldo.
De lá para cá, oito policiais militares viraram réus no processo que apura as responsabilidades pela morte do adolescente e pela tentativa de ocultar a autoria do crime. Afastados do policiamento de rua e respondendo em liberdade, todos retornam para suas casas ao fim dos dias. E a mais recente determinação da Justiça sobre o caso mostra que a demora para um julgamento está longe de acabar. O juiz José Antônio Prates Piccoli, da 1ª Vara Criminal de São Leopoldo, onde tramita a ação penal, marcou audiência para ouvir testemunhas de defesa para 6 de maio de 2019. Com isso, a família de Maicon terá de aguardar pelo menos mais um ano e três meses com o processo parado.
A assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Estado (TJ) confirmou a data e informou que o amplo intervalo de tempo se deve ao fato de réus estarem em liberdade, uma vez que a prioridade nas tramitações é dada aos casos com acusados presos. GaúchaZH enviou por e-mail para a assessoria do TJ perguntas ao juiz Piccoli, mas não houve retorno até a publicação dessa reportagem.
O promotor de Justiça Sérgio Luiz Rodrigues, responsável pelo caso, disse que foi surpreendido pelo fato e procurou o juiz responsável pelo caso. Segundo Rodrigues, o magistrado informou que esse tempo ocorre, porque a defesa arrolou diversas testemunhas em jurisdições diferentes, que precisam ser ouvidas para o prosseguimento do processo. Mesmo após essa justificativa, o promotor pediu ao magistrado que antecipe a audiência. Como está entrando em férias nesta quinta-feira (1º), o promotor fez a solicitação de maneira informal, mas, segundo Rodrigues, o juiz se comprometeu em analisar o pedido.
— O Ministério Público não faz a pauta de audiências. Trabalhamos para que os processos tenham a celeridade que a gravidade do fato reclama. Esse fato é grave, de repercussão, que merece uma resposta grave do Estado em razão da maneira que o rapaz foi morto, mas a gente depende da pauta do Judiciário.
Passados três anos da morte do filho, Sara Lima diz ter sido acompanhada pela dor da falta de Maicon durante todo o período. Apesar da demora, a mãe mantém a expectativa de responsabilização dos culpados:
_ Ontem (terça-feira) ainda publiquei um vídeo sobre ele no Facebook. A nossa esperança é levá-los (os acusados) a júri. A gente fica triste pela demora, mas sabe que a Justiça é assim mesmo. Só espera que se confirme que tarde mas falha.
Os oitos brigadianos tornaram-se réus com a aceitação da denúncia em 16 de julho de 2015. Rodrigues denunciou os PMs Fabiano Francisco Assmann e Moysés Augusto Ribeiro Stein por homicídio triplamente qualificado. Ambos são acusados por terem efetuado vários disparos de arma de fogo, acertando dois tiros em Maicon.
Outros dois brigadianos – Ulisses de Mattos Quos e Ângela Peppe Christofari – são réus por tortura. Eles teriam agredido a chutes, coronhadas e pisões, fraturando o braço direito de outro jovem que acompanhava o grupo de amigos de Maicon e correu depois que os PMs chegaram atirando.
O sargento da BM Antônio Rony Gonçalves Rodrigues responde por prevaricação. Como superior dos demais que participaram da abordagem, teria liberado uma testemunha com a intenção de proteger os subordinados.
Quatro denunciados pela troca da bala
Os PMs Valentim Martins Torres Neto e Júlio César Barros, além de Assmann e Moysés, também viraram réus por fraude processual. Os quatro teriam agido em conjunto para trocar um dos projéteis retirados do corpo de Maicon, enquanto o adolescente era atendido dentro do Hospital Centenário. Conforme a denúncia, os brigadianos teriam substituído uma bala calibre .40, que havia ficado presa às vestes da vítima, por um projétil calibre .380 com a intenção de "fraudar a investigação, ocultando a autoria do homicídio".
Laudos do Instituto-Geral de Perícias (IGP) comprovaram que a bala apresentada pelos PMs na delegacia como sendo a retirada do corpo do rapaz não tinha vestígios de sangue ou material humano. A perícia também comprovou que uma cápsula encontrada a cerca de 20 metros do local onde Maicon tombou era de calibre .40, e havia sido disparada pela arma de um dos brigadianos.
Ângela, Ulisses e outro brigadiano, Edinei de Matos, também viraram réus por fraude processual. De acordo com o promotor, o trio teria recolhido cápsulas de projéteis do local do homicídio "com o fim de induzir juiz e peritos em erro" no decorrer da investigação.
Para parte da defesa do réus, a lentidão do processo também é motivo de incômodo.
– Para o meu cliente isso é muito ruim, porque foi denunciado mesmo sem nada a ver com o homicídio. Entrou no caso apenas por ser o motorista do oficial de dia do batalhão que foi até o hospital na noite do episódio, quando supostamente teria ocorrido a troca do projétil. Com isso, enquanto ele responde ao processo, fica com seus procedimentos de promoção congelados e restrito ao trabalho administrativo – afirmou Diogo Fagundes Lauermann, advogado de Torres Neto.
GaúchaZH telefonou e deixou recado na caixa de mensagem dos celulares dos advogados Jairo Luís Cutinski, representante de cinco réus, e Fabricio Leão da Silva, defensor de Gonçalves Rodrigues, mas não obteve retorno até a publicação dessa reportagem.
Nenhum responsabilizado por festa no batalhão
Ângela, Ulisses, Fabiano e Moysés chegaram a ser presos, mas foram libertados poucos dias depois para responder ao processo em liberdade. No retorno ao batalhão, foram recebidos em confraternização com bolo e refrigerante.
O Ministério Público recorreu pedindo prisão preventiva dos quatro, mas o recurso foi negado em julgamento pela 3ª Câmara Criminal do TJ no mesmo dia em que a denúncia foi aceita em São Leopoldo.
Na época do episódio, o então corregedor-geral da BM, Jefferson Jacques, hoje à frente do Comando de Policiamento da Capital, prometeu investigar a recepção festiva aos acusados. Em pedido encaminhado com base na Lei de Acesso à Informação, GaúchaZH solicitou cópia do procedimento. A BM informou que "foi instaurada uma sindicância policial militar que concluiu, em 26 de agosto de 2015, pela inexistência de crime comum e militar e de transgressões da disciplina." A corporação não forneceu cópia da apuração alegando que "o inquérito é sigiloso".
RELEMBRE O CASO
- Em 1º de fevereiro, Maicon Doglas de Lima, 16 anos, foi baleado após briga entre torcedores dispersada pela BM, em São Leopoldo. Morreu no Hospital Centenário.
- No início da investigação, em depoimento à Polícia Civil, um PM admitiu ter feito disparos com munição comum, alegando legítima defesa. Surgiu ainda a suspeita de que um dos projéteis retirados com marcas de sangue do corpo do jovem teria sido trocado por outro com traços de concreto.
- No dia 3, a Polícia Civil divulgou vídeo de câmeras do hospital mostrando que quatro PMs entraram na sala onde o rapaz foi atendido. Veja:
- No dia 4, a Justiça decretou a prisão de dois PMs - Fabiano Francisco Assmann e Moyses Augusto Ribeiro Stein. No dia 13, outros dois foram presos: Angela Peppe Christofari e Ulisses de Matos Quos.
- No dia 26, a Polícia encerrou o inquérito indiciando nove brigadianos. Também foi pedida conversão da prisão temporária dos quatro PMs detidos em preventiva.
- Na quinta-feira, o pedido foi negado, e os quatro PMs foram soltos.
- Na segunda-feira, eles foram recepcionados em confraternização no 25º BPM. No mesmo dia, o MP entrou com recurso pedindo a prisão preventiva dos PMs.
- No dia 13 de março, laudos de perícia confirmaram que um estojo de munição .40, achado próximo do local onde o jovem foi baleado, partiu de uma arma da BM. Outro lado confirmou que o projétil apresentado pelos brigadianos que sendo o retirado do corpo de Maicon foi substituído por uma munição .380 sem traços de sangue ou material biológico.
- No dia 1º de junho, completaram-se quatro meses da morte de Maicon, e a família ainda aguardava resposta das autoridades. Com as investigações de Polícia Civil e Brigada Militar encerradas, ambas com indiciamentos, a denúncia não havia sido oferecida porque a promotoria aguardava a Justiça Militar remeter o inquérito policial militar (IPM) conduzido pela BM à Justiça comum.
- No dia 15 de julho, a promotoria ofereceu denúncia contra oito brigadianos, dois deles por homicídio triplamente qualificado.
- No dia seguinte, a 1ª Vara Criminal de São Leopoldo aceitou denúncia contra os oito PMs.
- De lá para cá, diversos documentos e depoimentos foram se somando ao processo. No último movimento determinado pela Justiça, em 15 de dezembro do ano passado, foi agendada audiência para ouvir novas testemunhas de defesa em 6 de maio de 2019. Com isso, o processo deve ficar pelo menos mais um ano e três meses parado.