Encerra-se nesta semana o ciclo daquele que talvez seja o homem que tenha passado mais tempo dentro da Cadeia Pública de Porto Alegre, conhecida como Presídio Central. O médico panamenho Clodoaldo Ortega Pinilla, 71 anos, só aguarda a publicação no Diário Oficial do Estado para começar a curtir sua aposentadoria, após 37 anos de atuação na maior prisão gaúcha.
Fica para trás uma rotina de atendimento a presos, permeada por dias de violência, tensão e acontecimentos trágicos. Ele vivenciou três grandes motins prestando atendimento a apenados que marcaram a história do crime no Estado.
Pinilla, conhecido como Dr. Central, será homenageado nesta terça-feira (4) em um jantar oferecido pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) e pela direção da Cadeia Pública.
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O tempo de trabalho do médico no Central coincide com o número de anos em que ficou preso o homem que passou mais tempo no sistema prisional gaúcho. Camilo da Silva Melo, 58 anos, hoje trabalhador com carteira assinada, passou 37 anos atrás das grades e foi um dos milhares de pacientes de Pinilla.
O médico, que durante parte da infância e da adolescência, ainda no Panamá, sonhou em ser jogador de beisebol, chegou ao Brasil em 1969, a partir do contato com um tio que morava no Rio de Janeiro. Mediante um convênio entre os dois países, em 1974 ele começou a cursar Medicina na UFRGS.
No mesmo ano da formatura, em 1980, iniciou sua trajetória no Presídio Central. Naquela época, eram 1,2 mil presos e ele era um dos 18 médicos que atendiam no Pavilhão Médico, no complexo da prisão, onde também trabalhavam psicólogos, enfermeiros e uma assistente social.
De acordo com Pinilla, havia uma unidade clínica e uma cirúrgica, laboratório, raio X, farmácia e uma sala de recuperação.
– Naquela época, não havia tanta violência nas ruas, então tudo era mais tranquilo – relembra.
Porém, três anos depois, um acontecimento marcaria a história do sistema penitenciário gaúcho e não sairia mais de sua memória. Com tuberculose, José Valmirante, o Zezinho, considerado o principal assaltante de bancos do Estado naquele início dos ano 1980, foi encaminhado por Pinilla para atendimento no Sanatório Partenon, na Avenida Bento Gonçalves.
De volta ao presídio, 15 dias depois, foi levado novamente ao sanatório. Desta vez, com pedido de internação feito por outro médico. Mas Zezinho nem chegou a ser atendido. Logo que levado à enfermaria, foi resgatado por dois homens armados e com máscaras, que dominaram a frágil escolta.
– O Valmirante foi um dos tantos que atendi e que não saíam das manchetes. Também teve o Carioca (Humberto Luciano Brás de Souza, líder do tráfico no Morro da Cruz, morto em 1989), o Vico (Vítor Paulo Mahus Fonseca, assaltante de banco criador da Falange Gaúcha) e tantos outros – conta o médico.
Durante o período em que Dr. Central se dedicou ao maior presídio do Estado, o Rio Grande do Sul teve 11 governadores diferentes, a população do RS cresceu de 7,77 milhões para 11,29 milhões (45%) e a massa carcerária do Presídio Central subiu de 1,2 mil para 4,8 mil (300%).
O antibiótico favorito dos presos
Lidar com criminosos considerados de alta periculosidade nunca foi problema para Pinilla. Todos sempre o chamaram de "padrinho".
– O médico tem um paciente na frente e não pode se importar com o que ele fez e porque está preso – diz.
Contudo, com o tempo, ele aprendeu a se resguardar diante de algumas peculiaridades do cárcere. Durante um período, ele estranhou que a maioria dos pacientes que o procurava já chegava com uma "receita" em mente.
– Podia ser gripe, dor de cabeça, dor no pé, seja lá o que fosse, todos me pediam amoxilina. Não aceitavam comprimidos e drágeas – diz.
Ele acabou descobrindo que o antibiótico preferido dos presos, indicado para casos de infecção bacteriana, era requisitado para propósitos escusos: as cápsulas eram abertas, e o conteúdo, em forma de pó branco, era usado para aumentar o volume de porções de cocaína.
Pinilla, que viu a aids chegar ao sistema, aponta esta síndrome, juntamente com doenças oportunistas, como a tuberculose, a sífilis e a hepatite C, como os maiores motivos de preocupação para profissionais da Medicina que trabalham em presídios.
– Um dos grandes problemas sempre foi o compartilhamento de seringas – aponta.
Se quando Pinilla começou a trabalhar no Presídio Central eram 18 médicos do Estado, hoje ele é o último com esse tipo de contrato. Com sua aposentadoria, o serviço segue sendo realizado por profissionais do Hospital Vila Nova, com o qual a SSP mantém convênio.
Resgate, rebeliões e fugas
Com o tempo, ainda nos anos 1980, o Pavilhão Médico foi transformado no Hospital Penitenciário, e a violência nas ruas, tendo o tráfico de drogas e os assaltos a banco como principais combustíveis, disparou. Em consequência, o Central começou a sofrer com o déficit de vagas.
A criminalidade em alta e um incipiente quadro de superlotação foram ingredientes para uma onda de rebeliões na prisão. Em julho de 1987, justamente Carioca e Vico lideraram uma rebelião com tomada de reféns, que resultou na fuga de oito presos. Em dezembro do mesmo ano, ocorreu um novo motim, desta vez no Hospital Penitenciário.
– Eles (os presos) encharcaram com álcool as roupas do Mario Marques (diretor do hospital) e de outros reféns e ameaçavam colocar fogo – diz o médico, que, no início da rebelião, estava em uma sala próxima da que foi invadida pelos amotinados.
Sete anos depois, também próximo do palco dos acontecimentos, novamente no Hospital Penitenciário, ele acompanhou o início da maior rebelião já ocorrida no Estado, que culminou com a invasão do Hotel Plaza São Rafael, no Centro, por bandidos com reféns. Entre os quais, Dilonei Francisco Melara, líder de uma facção assassinado em 2005. O hospital foi fechado em 2002, durante o governo de Olívio Dutra.
– Cumpri minha obrigação com o Estado. Daqui para frente, sigo médico, atendendo em meu consultório. A Medicina continua – conclui.
O sistema penitenciário sai da vida de Pinilla, mas ficam as histórias do
Dr. Central.