Quadrilhas espalhadas por todo o Brasil estão clonando caminhões do Exército e até mesmo veículos zero quilômetro, antes mesmo de serem emplacados. Revelado neste domingo pelo Fantástico, o esquema foi descoberto pela Delegacia de Roubo de Veículos do Rio Grande do Sul, que na semana passada, realizou uma operação em 15 cidades, na qual foram presas 13 pessoas e apreendidos 26 caminhões clonados.
Durante três meses, uma equipe da RBS TV acompanhou os bastidores da apuração. Tudo começou com uma investigação solitária realizada por um agricultor de São Lourenço do Sul, que teve o caminhão furtado na RST-118, em Gravataí. Depois de buscar informações em postos de gasolina e de ouvir colegas motoristas, ele chegou a um galpão no interior de Canguçu. Foi onde descobriu o veículo roubado.
– Fiz de conta que ia comprar um caminhão. Aí perguntava pra um, perguntava pelo outro. Aí numa certa revenda. Lá todo mundo suspeitava. Falava: ‘olha, aquele cara é perigoso’. Aí fui atrás desse cara aí. Fui investigar – explica o caminhoneiro.
A partir da descoberta, a polícia passou a investigar o suspeito de envolvimento no furto. Ingo Ramson Abraham, o Tio Pipa, é dono de uma loja de caminhões em Pelotas. Ele foi preso na operação da semana passada, juntamente com a esposa e um funcionário. Ele teria negociado a maioria dos 50 caminhões clonados que rodam no Rio Grande do Sul. A estimativa é que o número total de clones rodando no Brasil chegue a mil.
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Um dos responsáveis pela apuração, o delegado Marco Guns explica que os bandidos tinham acesso à numeração de chassis de caminhões do Exército, que não eram emplacados. Depois roubavam veículos similares e remarcavam os chassis com essa numeração. O golpe passou a ser aplicado porque, nessa modalidade de clonagem, não existe um veículo similar e legal, rodando por ruas e estradas, o que dificulta a descoberta da fraude.
– Com isso, este veículo subtraído em roubo ou furto andará, transitará, pelo Brasil normalmente, regularmente, uma vez que não haverá no Brasil um veículo idêntico àquele em trânsito. Por quê? Porque uma parte desses veículos estarão em unidades do Exército Brasileiro, fechado nas unidades do Exército – explica Guns.
A polícia investiga a participação de funcionários de Centro de Registro de Veículos (CRVAs) no golpe, que podem ter facilitado os registros dos clones. Entre os veículos clonados registrados pelo Dentran, está o caminhão apreendido do agricultor José Ilson Peil (foto), de Turuçu, no Sul do estado.
– Foi vistoriado. Levei ele lá (no CRVA) e (o caminhão) passou na vistoria. Se ele (vistoriador) liberou ali, como eu vou saber se tem coisa errada nele ou não, afirma o agricultor, cujo caminhão usava número de chassis de um veículo do exército em Fortaleza.
O comando do exército informou ter realizado investigação interna, sem identificar envolvimento de militares no vazamento da numeração dos chassis. Uma das linhas de investigação é que os dados estejam vazando do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), órgão ligado ao Ministério das Cidades e que gerencia o sistema de registro de veículos de todo Brasil. Em nota, o órgão afirmou não existir evidências de que esteja ocorrendo tal vazamento.
– É uma fraude extremamente especializada. Trabalho já há treze anos na área criminal, nunca tinha visto coisa igual – observa resume o delegado Adriano Nonnenmacher, que fez parte da investigação.
Investigação revela esquema em outros estados
Investigação independente realizada pela equipe da RBS TV revelou que o novo esquema de clonagem de se espalha por todo o país e envolve também veículos exportados e zero quilômetro, destinados ao mercado interno.
A reportagem teve acesso a uma apuração interna da montadora Toyota, que descobriu a existência de clones de uma frota de 564 caminhonetes Hyllux, que sequer foram emplacadas. Parte delas foi destinada ao exército e o restante à concessionárias, empresas e prefeituras de todo o Brasil.
Três caminhonetes foram repassadas a revendas e a uma empresa de engenharia do Rio Grande do Sul. As quatro não puderam ser emplacadas porque o número do chassis foi utilizado para esquentar similares roubados, registrados nos estados do Paraná, Bahia e Pará. Todas foram trocadas por veículos novos.
Em ação judicial na qual tenta fazer com que o Denatran bloqueie os chassis da frota clonada, a montadora alega a ocorrência de fraude na Base de Dados Nacional (BIN) do Denatran. Ou seja, suspeita que o vazamento dos chassis esteja ocorrendo através do órgão público que organiza o banco de dados de veículos no Brasil.
A mesma suspeita foi apresentada ao Ministério Público do Rio de Janeiro pela Mitsubishi, que comunicou a clonagem de uma frota de 221 caminhonetes Triton exportadas para a África e Argentina, e, portanto, não emplacada no Brasil.
– A gente acredita que funcionários do Denatran tenha repassado a essas quadrilhas a numeração dos chassis, porque somente eles e os funcionários das montadoras possuem esse tipo de acesso a essa informação – diz a delegada Renata Araújo, da Polícia Civil do Rio de Janeiro.
O presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Antônio Megale, concorda que esse vazamento pode ter ocorrido no Denatran.
– A simples obtenção do número de chassi não é suficiente pra você permitir o emplacamento. É importante que você tenha o casamento da base que está no Denatran com o número de chassi, que é o pré-cadastro chamado. Então, essa informação vazou de alguma forma e isso precisa ser investigado – afirma Megale.
Em nota, o Denatran diz não existir evidências de que possa ser o foco do vazamento, uma vez que os dentrans e montadoras também teriam acesso à base de dados. O Denatran se negou a atender o pedido das montadoras, para bloquear os chassis dos clones, alegando que essa é uma atribuição dos Detrans. Diz que editou circular, em agosto, determinando aos estados que coloquem uma restrição nos documentos desses veículos clonados, sempre que forem descobertos.