O primeiro chamado veio de boca em boca, nas ruas da Vila dos Sargentos, no bairro Serraria, zona sul de Porto Alegre. Um bonde partiria em alguns minutos para um ataque aos pontos de tráfico do Beco do Adelar, no Bairro Aberta dos Morros, controlados por uma facção rival. O jovem de 21 anos, que estava escalado para fazer parte do grupo, ficou contrariado. Era sábado à tarde e ele estava com a namorada. Comentou que não iria. Mas aí uma mensagem via WhatsApp reforçou a convocação.
– Quando chega essa mensagem, é proibido dizer não para a facção – avisa um amigo que prefere não ser identificado.
Um carro parou diante do jovem e um fuzil lhe foi entregue. O humor dele mudou imediatamente. Passou à euforia de quem está acostumado a partir para matar ou morrer. E foi com o bonde para a missão.
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Era sábado, 22 de outubro. Cerca de três horas depois, uma pequena multidão aplaudia a saída de um ônibus da Brigada Militar do Beco do Adelar. O local havia sido cenário de uma batalha digna de guerra. Policiais e criminosos tiveram intensa troca de tiros. Um dos suspeitos, Régis Maurício Lima Alves, o Reginho, 27 anos, tombou no confronto com os PMs. Sete outros jovens foram presos e três adolescentes apreendidos. Todos foram colocados dentro daquele ônibus.
Alheios aos aplausos da rua, eles foram filmados por um policial militar em um vídeo de 17 segundos. Um recorte do principal alicerce das facções criminosas na Capital.
– O que realmente alimenta as facções é este conceito do "vida loka", que eles vivenciam no dia a dia. São jovens sem perspectivas e com uma missão. Não há preocupação com o futuro, nem com quem esteja mais próximo. Do tipo "se tiver que assaltar, eu assalto. Se tiver que matar, eu mato". A morte realmente faz parte. É rotina – acredita o delegado Rodrigo Pohlmann, do serviço de inteligência da Secretaria da Segurança Pública, que mapeia as facções criminosas da Capital.
O riso
Na imagem, eles pouco se importam que atrás da câmera esteja um policial. Seguem cumprindo a missão de atacar os rivais. Um garante que vai esquartejar, outro que matará, um terceiro, que usará o fuzil que carregava no ataque. O riso sarcástico – ou nervoso – é uma constante durante os 17 segundos.
– É a quebra de todo limite moral, eles não têm medo de sofrerem a punição da lei ou da autoridade. São vaidosos ao extremo. Não basta pertencer ao grupo, ser bandido. É preciso ser bandidão. Há uma outra escala de valores, então o arrependimento ou o sentimento da perda de um companheiro, por exemplo, ficam para segundo plano – diz o psiquiatra Luiz Carlos Illafont Coronel, que faz parte do Gabinete de Gestão Integrada da Secretaria da Segurança Pública.
O crime e as drogas
Reginho, morto no confronto com a BM, era morador da Vila dos Sargentos, como a metade dos ocupantes do ônibus. Tinha trajetória semelhante a todos eles. Jovem, envolvido em outros crimes que o levaram cedo à prisão e usuário de drogas.
– Para uma pessoa tida como clinicamente normal, o uso de drogas liberatórias (álcool, maconha, crack ou cocaína) tem o potencial de multiplicar até três vezes o seu comportamento violento. Em alguém com transtornos mentais, esse potencial sobe para dez vezes – afirma Luiz Coronel.
Segundo ele, 84% da população carcerária sofre de algum tipo de transtorno mental. Desde a dependência química, que aflige metade dos detentos, até esquizofrenia, bipolaridade ou depressão. A maior parte, não diagnosticada, muito menos tratada. No mundo do crime, eles se tornam úteis.
– Se atacássemos seriamente a questão da dependência química e do acesso às drogas, diminuiríamos drasticamente bondes como esse. É preciso criar presídios mas, principalmente, é preciso tratar os detentos.
Uma tropa espalhada pela cidade
O bonde, no jargão do crime, é como um grupo de assalto em uma guerrilha. É formado para uma missão ordenada pelo comando da facção. Não há tempo para questionar a ordem.
– É como uma "grenalização", eles agem apaixonadamente por uma causa que não explicam. É fé cega. Aí entra em cena o efeito manada – acredita o juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Criminais da Capital.
Aquela missão de 22 de outubro foi iniciada dois dias antes, em um ataque errado no estacionamento do supermercado Zaffari, do bairro Cavalhada, vitimando o empresário Marcelo Oliveira Dias, 44 anos. Dois dos presos no ônibus foram denunciados pelo Ministério Público pela participação na execução do empresário.
Na tarde do sábado, o ataque não seria mais a um alvo do grupo inimigo, mas à base dele. Não são mais criminosos de uma comunidade que se reúnem para um ataque, mas os chamados para o bonde funcionam como uma tropa convocada.
– Eles vêm de diversos lugares geralmente controlados pela facção. Recebem mensagem pelo celular para estarem em tal lugar, tal hora, onde um carro tal vai apanhá-lo. Recebe uma arma e cumpre a missão. Depois, mensagens são enviadas ao comando para comprovar o cumprimento da missão. Muitas vezes os envolvidos nem se conhecem, mas negar a participação no bonde pode significar a morte deles. São como funcionários – aponta o delegado Rodrigo Pohlmann.
A recompensa
Naquele bonde, a facção usou jovens da Vila dos Sargentos – de onde teria partido o líder do grupo –, na zona sul, vilas Tamanca e Ipe, na zona leste, Viamão e Alvorada.
A recompensa por isso está bem longe de ser o glamour de uma vida lucrativa no crime. De acordo com a polícia, quem vai no bonde, já é funcionário do grupo. Recebe para atuar em assaltos e no tráfico de drogas, mas neste mundo em que matar ou morrer faz pouca diferença, não há espaço para o acúmulo. O dinheiro que ganham geralmente é consumido em uma noite, esbanjando ou na compra de armas.
Mesmo que a guerra entre facções represente muita lucratividade para quem está no topo da pirâmide do tráfico de drogas, para quem integra um bonde, a lógica é outra. A maioria dos integrantes daquele bonde é miserável.
– Contentam-se com o leite do dia, a comida do dia e amanhã veem como vai ser. O importante é a satisfação do momento – avalia o delegado.
A relação de emprego surge geralmente na cadeia. Na galeria controlada pela facção, o detento com menos condições financeiras passa a ser sustentado pelo grupo. E isso geralmente se reverte em dívida a ser paga nas ruas.
Nas prisões, como soldados
Mesmo que a estrutura de comando de uma facção criminosa tenha nas cadeias o seu escritório, a construção de um soldado disposto a matar ou morrer por essa causa começa muito antes. O aplauso da comunidade do Beco do Adelar depois da prisão do bonde, para o juiz Sidinei Brzuska, é inútil.
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– As prisões hoje são como campos de treinamento do Estado Islâmico. Um preso já chega ao sistema como uma bomba prestes a explodir, e ela não é desarmada em uma galeria que vive e fala do crime o dia inteiro ociosamente e sob controle de facções criminosas. É o efeito contrário ao da ressocialização – define.
O psiquiatra Luiz Carlos Illafont Coronel vai além.
– Estamos depositando diariamente um exército de jovens, de mão beijada, para essa estrutura transtornada dos presídios. É resultado direto da desestruturação das famílias e da sociedade. As relações se liquefazem rapidamente – diz.
Pai ausente
É papel do pai, ou da figura paterna, por exemplo, na formação da personalidade, mostrar os limites. E este, de acordo com o psiquiatra, é o ponto principal de ruptura que se vê nas periferias.
– A sociedade precisa oferecer a essas famílias o suporte para contrapor ausência paterna, ou o enfraquecimento paterno. Seja com mais creches, escolas de tempo integral ou atividades comunitárias. Se o Estado não investir nessas questões básicas, o jovem busca um pai com valores errados – explica.
Não é à toa, lembra o psiquiatra, que os líderes de facções são chamados de "patrões". A maior parte deles, segundo ele, tem transtorno antissocial de personalidade. São frios, cometem as maiores atrocidades e não demonstram arrependimento, mas principalmente, são líderes e manipuladores. É a este perfil que um integrante de bonde tenta agradar e se identificar.
– As nossas comunidades precisam ter motivos para se orgulhar e dar destaque a esse jovem que hoje tem o crime como referência sem nenhuma concorrência. Ele precisa de uma razão para não matar ou morrer pelo crime – avalia o juiz Sidinei Brzuska.
Sem referências positivas, o comportamento violento tende a se multiplicar. Em 70% dos casos de criminosos com transtorno antissocial de personalidade, por exemplo, houve, sobretudo na infância, algum episódio violento – físico, psicológico, mental, abandono ou negligência – que o marcou para sempre.