O assassinato de Cristine Fonseca Fagundes, 44 anos, tirou o sono dos gaúchos, acordou o governador do Estado, derrubou o secretário da Segurança e mobilizou tropas federais para Porto Alegre. O responsável por essa tormenta é um homem de 30 anos que há mais de uma década vai e vem entre cadeias beneficiado por um sistema punitivo ineficiente e que estimula a impunidade.
Desde adolescente, Tiago Oliveira da Silva pratica assaltos. Começou atacando com um garfo de cozinha, mas não demorou a evoluir para arma de fogo. Tiago entra e sai da cadeia desde 2004. Sua conduta carcerária é considerada péssima por desobedecer e ofender carcereiros. Já ficou quatro vezes em isolamento como castigo e respondeu a pelo menos quatro processos administrativos.
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Da mesma forma que matou Cristine para roubar um celular (em depoimento, alegou disparo acidental), Tiago quase tirou a vida de uma jovem de 18 anos, em 2005, ao assaltar um grupo de estudantes. Enquanto revistava uma mochila, apertou o gatilho do revólver, acertando a virilha da garota.
O crime resultou em sua primeira condenação. A segunda foi em 2013, por porte ilegal de arma.
Tiago já obteve três autorizações para progressão para o semiaberto e duas de liberdade condicional, todas suspensas por fuga, mau comportamento na cadeia ou por cometer novo crime.
O delegado Alexandre Vieira, da 9ª Delegacia da Polícia Civil da Capital, lembra que Tiago é conhecido por policiais, e que o perfil dele não é diferente de muitos que estão soltos.
– Tem outros Tiagos prestes a cometer crimes dessa natureza. Esse tipo de bandido, que pratica crimes com essa intensidade, com essa violência, só entende uma linguagem: é cadeia e pronto. O trabalho deles é roubar – afirma.
Antes da maratona de sete assaltos, em 25 de agosto, que culminou com a morte de Cristine, Tiago tinha sido preso em agosto de 2015 em situação semelhante – seis roubos em série, no bairro Auxiliadora, na Capital. Se já tivesse sido punido por esse crime, possivelmente, não estaria na rua para matar Cristine – foi solto em 23 de maio, favorecido por decreto presidencial que perdoa condenados quando restam até 25% da pena a cumprir.
Passado mais de um ano do arrastão no bairro Auxiliadora, o crime não foi julgado até hoje, e não há previsão de quando isso vá ocorrer por deficiências de estrutura do sistema de segurança, que envolve desde as polícias até o Judiciário.
Naquela noite de 10 de agosto de 2015, Tiago e um comparsa atacaram seis pessoas em um intervalo de 20 minutos. Começaram com o roubo de um Fox e depois assaltaram cinco pedestres. Tiago foi capturado por dois PMs no bairro Boa Vista, com um revólver calibre 22 e o carro cheio de bolsas, carteiras e celulares entre outros pertences das vítimas.
Tiago foi preso em flagrante e quatro vítimas foram localizadas em um primeiro momento. O Ministério Público (MP) ofereceu denúncia à Justiça, mas pediu novas diligências para identificar mais alvos do criminoso. Um mês depois do crime, a investigação foi concluída e a denúncia aditada – ampliada com mais um réu e com seis vítimas.
Em dezembro, a juíza Vanessa Gastal de Magalhães, da 1ª Vara do Júri da Capital, entendeu que Tiago poderia responder ao processo em liberdade (ele seguiria preso até maio deste ano por causa das condenações), à medida que já tinha se passado quatro meses e a instrução da ação não havia começado.
A primeira audiência do caso ocorreu em maio. Mas Tiago, recolhido em Charqueadas, não foi levado pela Susepe à audiência e um PM também não apareceu em razão de férias. Uma nova sessão na Justiça foi realizada no mês passado. Dessa vez, outro PM estava em férias e não apareceu. E Tiago, já em liberdade desde maio, estava sumido. Uma terceira audiência foi marcada para dezembro.
Processo em marcha lenta
- Em 10 de agosto de 2015, Tiago Oliveira da Silva foi preso em flagrante após roubo de um carro e assalto a cinco pedestres na Capital. Em 13 de agosto, a 9ª DP remeteu inquérito à 1ª Vara Criminal do Fórum Central, com o indiciamento de Tiago em quatro roubos. Em 3 de setembro, o MP ofereceu denúncia, mas pediu à 9ª DP a remessa de depoimentos das demais vítimas e laudo pericial do revólver apreendido.
- Em 18 de setembro, o MP ampliou a denúncia – com mais um réu e seis vítimas –, mas sem o laudo da arma, que só ficaria pronto em 23 de fevereiro deste ano. Em 23 de setembro de 2015, a juíza Vanessa Gastal de Magalhães aceitou a segunda denúncia, e, em 6 de outubro, Tiago, recolhido à Penitenciária Modulada de Charqueadas, foi notificado.
- Em 18 de dezembro, atendendo a pedido da Defensoria Pública, a juíza concedeu a liberdade provisória para Tiago (que seguiu preso até 23 maio por condenações anteriores). A magistrada não pediu parecer prévio do MP (e a decisão não foi contestada pelo órgão) com a justificativa de que era o último dia antes do recesso. Alegou que Tiago estava preso havia quatro meses sem ter começado a tomada de depoimentos.
- Em 11 de maio deste ano, foi realizada a primeira audiência sem a presença de Tiago. A Susepe não o apresentou por déficit de pessoal. Um dos PMs, testemunha de acusação, estava em férias. Em 18 de agosto, houve a segunda audiência. Em liberdade, Tiago não tinha sido localizado para ser intimado e não apareceu. Dias depois, matou a vendedora Cristine.
O que diz o subprocurador para assuntos institucionais do Ministério Público, Fabiano Dallazen
"No momento da decisão da juíza de soltá-lo (Tiago, em dezembro de 2015, sem vista ao MP), o regime dele já havia sido regredido para o fechado. Entendo que um recurso não teria efeito pratico, pois ele continuava preso por outros crimes. Ele tem 30 anos e os 12 anos de sua maioridade passou o tempo todo entrando e saindo da cadeia por crimes como porte ilegal de arma, assalto e tráfico. Não poderia ser beneficiado com comutação de pena."
O que diz o desembargador Túlio Martins, presidente do Conselho de Comunicação Social do TJ
"As leis penal e de execução penal são muito brandas. É necessária reflexão da sociedade, pois as leis são feitas pelos legisladores, escolhidos pelo voto. Se o processo (de agosto) já tivesse sido julgado, Tiago não estaria na rua, mas entendo que a juíza agiu dentro da lei. O juiz tem regras e prazos a serem respeitados. E há deficiências, escassez de recursos. Faltam vagas nas cadeias, o Judiciário tem déficit de 2 mil servidores. Vejo movimentos do Executivo para contratações, estamos reforçando varas criminais, implementando a videoconferência, já temos sistemas instalados em 43 pontos no Estado."
* Colaboraram Eduardo Matos, Schirlei Alves e Renato Dornelles