Os primeiros sinais e habilidades que orientavam João Pedro Amaral, 25 anos, para o cuidado e a preocupação com a saúde dos outros surgiram aos seis anos. O olhar atento o fazia perceber e avisar à professora quando um amigo e colega de aula, que era diabético, precisava repor a insulina. Além disso, a convivência com o avô materno – clínico geral –, as visitas ao trabalho da mãe – médica pediatra –, durante toda a infância e o seriado médico House, assistido na adolescência, foram elementos que incentivaram a formar o profissional que se graduou em Medicina na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) em setembro. Mas a sua formação foi bem diferente do habitual.
A reta final da faculdade – geralmente marcada pela prática com atendimento dentro de hospitais e postos de saúde – foi vivida de modo distinto no último semestre. Com o aval do Ministério da Educação (MEC), que liberou a formatura antecipada de profissionais da saúde em função da pandemia, o jovem optou por se graduar com 75% do internato concluído.
— Quando fomos afastados do atendimento assistencial, fiquei assustado. Fiquei quatro meses sem poder ir ao hospital e sem perspectiva de quando voltaria. Posteriormente, foi dada essa opção pelo MEC e a abracei. O currículo da PUCRS tem mais horas de estágio prático do que o exigido, por isso, sinto que não perdi em minha formação — diz João Pedro, que trabalha como pesquisador da CoronaVac, a vacina chinesa contra a covid-19, em teste no Hospital São Lucas da PUCRS, e que neste domingo, 18 de outubro, celebra seu primeiro Dia do Médico com diploma nas mãos.
Leonardo Pinto, diretor da Escola de Medicina da PUCRS, observa que João Pedro se formou durante a pandemia, mas não experienciou as mudanças que as universidades tiveram que fazer para não perderem o ano letivo. O decano afirma que o ensino na área médica sempre esteve atrelado ao treinamento dado em campo prático. Entretanto, ele aponta que, como consequência da pandemia, técnicas de simulação passaram a ser empregadas em maior escala para tentar compensar a falta de acesso a pacientes.
— Temos um laboratório que funciona como se fosse uma unidade de tratamento intensivo, com manequins que simulam, por exemplo, paradas cardiorrespiratórias. Trabalhamos com esses bonecos em sala de aula com pequenos grupos, enquanto outros ficam em casa. Contudo, pretendemos, aos poucos e assim que possível, aumentar a prática assistencial nos hospitais e postos para os anos intermediários, já que os doutorandos voltaram a campo — afirma Pinto.
Aposta no ensino híbrido
Essa metodologia de ensino que mistura atividades online com as presenciais, respeitando as exigências sanitárias, é também a aposta de Lucia Kliemann, diretora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Famed-UFRGS), para o presente e para o futuro. Ela reconhece que o distanciamento social provoca impactos negativos na formação médica, mas afirma que novas formas de lecionar foram encontradas em meio a este cenário:
A atividade presencial é imprescindível para que o estudante aprenda a conversar e examinar os pacientes, mas descobrimos que certas atividades de formação podem ser feitas de forma remota.
LUCIA KLIEMANN
Diretora da Faculdade de Medicina da UFRGS
— A atividade presencial é imprescindível para que o estudante aprenda a conversar e examinar os pacientes, mas descobrimos que certas atividades de formação podem ser feitas de forma remota. Nossos alunos do 3° e do 4° anos passaram a realizar discussão teórico-prática com base em casos clínicos reais de vídeos de teleconsultas e de cirurgias laparoscópicas. E temos um manequim que simula o corpo humano e que é usado por pequenos grupos de estudantes.
Lucia diz ainda que o acompanhamento de pacientes crônicos via telefone passou a ser feito pelos estudantes, com supervisão dos professores. A diretora ressalta que as práticas serão compensadas quando a curva de contágio pelo coronavírus baixar, mas que a pandemia sinalizou a urgência de as universidades repensarem o modo como aulas expositivas são ministradas.
Marcelo Capilheira, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (Famed-UFPel), faz coro a essa afirmação. Ele ressalta que o mais importante não é a presença física para uma aula expositiva, mas que o estudante consiga otimizar seu tempo de estudo:
— É preciso pesar as limitações sociais de acesso às ferramentas de ensino remoto, mas é necessário levar em consideração que ir até a universidade para ter uma aula expositiva faz com que o aluno perca tempo de deslocamento e de leituras que ele poderia estar fazendo. A pandemia nos mostrou que podemos colocar em nosso horizonte o ensino híbrido. O ideal seria sair de casa para realizar trabalhos práticos e discutir em sala de aula o que foi estudado em casa previamente.
Medicina humanizada mediada por tecnologia
Enquanto João Pedro já desejava – mesmo antes da pandemia – que aulas teóricas fossem realizadas de maneira remota, Jaqueline Volkmann, 53 anos, pediatra há três décadas e mãe do jovem, não cogitava ver atravessada de modo tão avassalador a conectividade para exercer sua profissão. A médica foi pega em cheio ao ver as consultas serem desmarcadas e o consultório esvaziar. Acostumada com o vaivém de famílias inteiras que iam às consultas e com a proximidade, ela teve que se adaptar às chamadas de vídeo para realizar os atendimentos.
— O João e o meu filho mais novo me deram umas dicas para arrumar o cenário de trabalho para as teleconsultas, em como posicionar a câmera para melhorar a qualidade do atendimento. Fui resiliente e me adaptei. Passei a emitir receita digital e busquei não perder vínculo humano com as mães e meus pacientes neste momento delicado — conta Jaqueline.
O que a médica se propôs a fazer é apontado como um dos maiores desafios da profissão neste momento e no pós-pandemia. É o equilíbrio entre o uso da tecnologia no atendimento sem que isso afete a qualidade da relação entre o paciente e o profissional da saúde.
Às vezes, o paciente só precisa de uma orientação e realmente não faz sentido expô-lo ao ambiente hospitalar. Em outros, será necessário conversar, tocar esse indivíduo para, talvez, pedir mais exames.
LEONARDO PINTO
Diretor da Faculdade de Medicina da PUCRS
O decano da Escola de Medicina da PUCRS explica que os médicos nativos digitais precisam identificar as limitações dos teleatendimentos e saber mapear quando o quadro precisa de uma consulta presencial.
— Às vezes, o paciente só precisa de uma orientação e realmente não faz sentido expô-lo ao ambiente hospitalar. Em outros, será necessário conversar, tocar esse indivíduo para, talvez, pedir mais exames e dar o encaminhamento correto — afirma Pinto.
O diretor da Famed-UFPel, Marcelo Capilheira, acrescenta:
— Não se pode cair na tentação de acreditar que a tecnologia é a grande maravilha do mundo. No fim das contas, quem cuida da saúde são pessoas, não máquinas.
Comunicação é a chave
Para Lucia Kliemann, da UFRGS, as consultas digitais exigem dos médicos que eles sejam ainda mais questionadores e ouvintes para que a história clínica do paciente, ou seja, os sintomas relatados e apresentados, tenha lógica:
— Os médicos que estão se formando e os que já estão no mercado precisarão ter ainda mais empatia por quem está diante deles. Os sintomas do paciente precisarão ser minuciosamente levantados, e isso exige o desenvolvimento das habilidades de comunicação. Além disso, será preciso saber explicar e confortar essa pessoa do outro lado da tela.
Os médicos, novos e veteranos, deverão atuar também no esclarecimento destas fake news e tirar dúvidas. A ciência é brutalmente questionada atualmente. Por meio do diálogo e do reforço dos laços entre médico e paciente, poderemos construir em conjunto uma massa com pensamento crítico.
MARCELO CAPILHEIRA
Diretor da Faculdade de Medicina da UfPel
Capilheira observa também que a tecnologia é uma via de mão dupla. Assim como ela facilita o contato entre médico e paciente, bombardeia a população com desinformação:
— Esse é um desafio imposto pela rapidez de acesso e compartilhamento de notícias. Os médicos, novos e veteranos, deverão atuar também no esclarecimento destas fake news e tirar dúvidas. A ciência é brutalmente questionada atualmente. Por meio do diálogo e do reforço dos laços entre médico e paciente, poderemos construir em conjunto uma massa com pensamento crítico.
Mesmo jovem e atento às novidades, João Pedro enxerga a resiliência como outra habilidade importante para os próximos anos:
— Brigar com as ferramentas não é o caminho, a melhor saída é sempre pensar em modos de potencializar o uso daquela novidade para o exercício da nossa função e conforto do paciente. Além disso, se o ensino híbrido se firmar, a organização será imprescindível para que seja possível manter uma rotina saudável de estudo.
Troca de experiências
Dentro deste cenário de uma medicina mais tecnológica e mediada por ferramentas e plataformas tecnológicas, os diretores das faculdades reconhecem que os nativos digitais têm vantagem sobre os migrantes digitais. Muitos professores tiveram de se readaptar para conseguir ministrar as aulas no sistema remoto. Às vezes, recorreram aos próprios alunos.
Quando precisou, Jaqueline apelou ao filho João Pedro para melhorar o teleatendimento e conta que recorrerá a ele sempre que surgir uma novidade com a qual ela não for muito familiarizada:
— Precisamos ter curiosidade, estarmos abertos e sermos flexíveis. O João trouxe muitas críticas construtivas para eu melhorar minha forma de atendimento durante a pandemia.
Para a diretora da Famed-UFRGS, a pandemia de coronavírus trouxe à luz que mesmo os mais veteranos estão na linha de frente no combate à doença, no atendimento de pessoas, e não deixaram de lecionar. Indicativo de que, apesar do cenário adverso, a medicina não deixou de ser exercida e ensinada:
— Esse é o maior exemplo que temos dado aos jovens. Essa doença desconhecida não nos privou da nossa missão de atender, de dar aula, de formar novos profissionais. A medicina é sinônimo de comprometimento e uma filosofia de vida. Essa pandemia vai passar e deixaremos como legado o fato de que não deixamos de formar profissionais e de cuidar das pessoas.