De bom humor, Daisy da Luz Marques, 36 anos, faz piada e contagia o ambiente com gargalhadas. O marido, o argentino Daniel Aubin, 60, e a filha, a adolescente Sharon, 14, dizem que ela é assim mesmo, constantemente positiva. Na adolescência nos anos 1990, esta palavra adquiriu, para Daisy, outro significado: “soropositiva” foi um adjetivo que precisou incorporar para si após confiar de olhos fechados em um namorado da adolescência e pegar HIV, justo em uma época de auge do preconceito. Felizmente, hoje a ciência avançou: remédios permitem que soropositivos não passem o vírus pelo sexo, nem pela gestação, nem pelo parto. A família que vive no bairro Partenon, em Porto Alegre, ilustra essa mudança. Desde que Daisy engravidou, não usa mais preservativo com o marido. E Daniel não tem o vírus. A filha, também não.
— Eu não tenho vergonha de falar, já fui até na escola da Sharon para conscientizar. Se falo, ajudo quem está trancado em casa deprimido por causa do preconceito. As pessoas perdem emprego por causa disso e acabam se fechando. Falo para lembrar: eu tenho HIV e tenho uma vida normal. Dá para ter filho, ter família e ser feliz — diz Daisy.
Após mais de 20 anos de estudos, a ciência evoluiu e hoje atesta: remédios impedem a transmissão do HIV quando a pessoa está com carga viral indetectável – isto é, o vírus está em níveis tão baixos no sangue a ponto de testes de laboratório nem o detectarem e não haver transmissão pelo sexo. A inexistência de risco (para homens e mulheres, independentemente da orientação sexual, ou se o parceiro é ativo ou passivo), ocorre, em geral, a partir de seis meses após o início do tratamento. A frase “indetectável é igual a intransmissível” foi destacada inúmeras vezes na Conferência Mundial Científica sobre HIV/AIDS que ocorreu em julho, na Cidade do México, acompanhada por GaúchaZH.
Eu não tenho vergonha de falar. Se falo, ajudo quem está trancado em casa deprimido por causa do preconceito. As pessoas perdem emprego por causa disso e acabam se fechando. Falo para lembrar: eu tenho HIV e tenho uma vida normal. Dá para ter filho, ter família e ser feliz.
DAISY DA LUZ MARQUES
36 anos
No entanto, a informação chega a poucos, e o preconceito persiste. A reportagem colheu depoimentos de quatro casais sorodiferentes (quando um tem o vírus e o outro, não) que desataram, em comum, um novelo de decepções: talheres discretamente não compartilhados, perda de emprego, preconceito de amigos e familiares, e até mesmo o sumiço repentino de namorados que, de um dia para o outro, abandonaram os amantes.
Para Eduardo Sprinz, chefe do setor Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, o preconceito com quem tem HIV é, hoje, igual a como era no passado.
— Pergunto a meus alunos: qual deles assumiria um relacionamento sério com uma pessoa sabidamente HIV positiva? De início, dizem que não. Depois, com a sedimentação das informações, alguns mudam de opinião. É o estigma e o preconceito — afirma Sprinz.
Contudo, para além das más experiências, desvelam-se histórias de amor e de companheirismo. De parceiros que não deixaram a ignorância falar mais alto e que optaram por ficar.
— É uma evidência bastante sólida que se confirmou ao longo dos anos. Mas o parceiro soropositivo tem que se tornar indetectável e se manter assim. Se a pessoa não tem boa adesão a medicamentos, não ficará indetectável — destaca Valdiléa Veloso, médica infectologista da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, responsável por coordenar, no Brasil, estudo sobre o tema conduzido em vários países.
Reflexões sobre o futuro
A segurança na gravidez é conhecida há mais de uma década: mães em tratamento não passam HIV para os filhos – a única proibição é amamentar. Já a segurança no sexo foi confirmada após três gigantescos estudos científicos (leia mais neste link). De 2007 a 2018, milhares de casais e suas mais de 100 mil relações sexuais foram monitorados. Ninguém pegou HIV do parceiro indetectável – assim como Daisy e Daniel.
— A carga viral só sobe se falhar o medicamento. Enquanto há adesão, há controle total sobre infecção — explica Eduardo Sprinz, do Clínicas.
Quem adquire o vírus reflete sobre o futuro: é possível ter uma família normal, um trabalho normal, uma vida sem sobressaltos? Daisy também foi atravessada por tais questionamentos. Um mês após conhecer Daniel, revelou ser soropositiva – para ela, amar e esconder era impossível.
A resolução do marido, no início dos anos 2000, foi rápida como uma rajada de vento: seguir o relacionamento, usar camisinha e amar-se. Anos depois, o amor expandiu e os dois decidiram ter um filho, o que exigiria deixar a camisinha de lado. As reações no posto de saúde os chocaram.
— Você é louco? É suicida? — interpelou uma enfermeira a Daniel, que ficou horrorizado.
— É a minha vida, você não pode tomar essa decisão — respondeu o argentino.
Daisy estava com carga viral indetectável e deu à luz Sharon, que é soronegativa. A filha, hoje estudante no Ensino Médio, é definida pelos pais como “uma garota dos livros”, que quer estudar Biblioteconomia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Na escola, a exemplo da mãe, não fica quieta e corrige quem fala bobagem:
— Eu falo que HIV não passa para outros se a pessoa toma remédio. Meus colegas me chamam de careta, acredita? Parece um assunto proibido na escola. Acho nada a ver.
"Dá para dizer que somos felizes"
Uma infecção no piercing colocado na pálpebra, 22 anos atrás, reconfigurou a vida de Luís Antonio Ribeiro, hoje aos 44 anos: fraqueza, embotamento de sentidos e desmaio o derrubaram. Correu para a emergência do hospital, acompanhado do marido, o militar Edimilson Pires da Rosa, 50. Um breve diálogo com o médico ficou marcado na memória.
— Luís, não tenho uma notícia muito boa para ti. Mas também tenho outra que não é ruim. Queres receber qual primeiro, a boa ou a ruim? — questionou o médico.
— Qualquer uma. Estou preparado para as duas — respondeu Luís.
— Tu estás com HIV. Mas a notícia boa é que tem tratamento e, se tomares os remédios, terás uma vida longa pela frente — disse o médico.
Luís foi tomado por um torpor: emocionalmente anestesiado, viu-se de cima, como um anjo, testemunhando a conversa. Puxado pelo pé pelo peso da culpa, voltou à realidade: e se tivesse se cuidado mais? Onde foi que descuidou? Passou para o marido? Seria abandonado?
Edimilson ficou chateado, mas se manteve ao lado de Luís. Teve medo, de outro tipo: e só se testou anos depois, quando os dois começaram a frequentar a Fonte Colombo, ONG de Porto Alegre que dá suporte a pessoas com HIV. Pressionado pelos voluntários, Edimilson fez o teste. O resultado deu negativo.
Juntos há mais de três décadas, os dois moram no bairro Jardim Protásio, em Porto Alegre, com uma shitzu. Usam preservativo nas relações.
— A gente tem uma vida bem normal: tomamos chimarrão, saímos para dançar, nada de especial, não — diz Luís.
— Com 33 anos de casados, acho que dá pra dizer que somos felizes — completa Edimilson.