Uma citação famosa atribuída a Picasso diz: “Toda criança é um artista. O problema é como continuar um artista quando crescemos”. A doutora em Educação e professora aposentada da UFRGS Susana Rangel faz questão de separar um do outro:
— As crianças não são artistas, elas experimentam e desenvolvem junto com outras crianças e com adultos seus processos de expressão. Podemos considerar como processos semelhantes, mas as crianças não fazem arte como os artistas. Fazem piruetas, dizem frases poéticas, mas não são poetas, assim como não são atletas ou dançarinos profissionais.
Não, seu filho de sete anos não conseguiria pintar a Guernica (1937). No entanto, ele e Picasso podem ter muito em comum. A pesquisadora Susana explica que tanto artistas quanto crianças fazem de conta que traços, objetos, pensamentos, são outras coisas. Para isso, utilizam seus sentidos de forma mais aguçada do que a maioria dos adultos “que deixaram para trás a capacidade de ver, imaginar, simbolizar”, escreve Susana. Essa capacidade poética comum nas crianças sofre um golpe quando alcançam seis ou sete anos.
— Não é a idade, mas a entrada na escola. Os primeiros anos de escolarização matam todos os potenciais das crianças — afirma a especialista. — Nos anos iniciais, a “arte” é para auxiliar outros conteúdos, raramente se encontram planejamentos e ações pedagógicas específicas do campo da arte.
O desenho dos pequeninhos é mais expressivo justamente porque eles ainda não estão nesse sistema escolar mais clássico, de notas e avaliação, que estimula competitividade. Isso reflete muito na autoestima, de repente a criança começa a ter mais vergonha e para de mostrar o que faz. Já os pequenos não têm medo de errar, e o resultado é uma coisa muito própria, autoral."
JULIA HAUSER
Artista visual e arte-educadora no ateliê Lola-Ufus
Nessa etapa, o desenho, até então uma das principais formas de comunicação das crianças, começa a perder espaço para a escrita. Artista visual e arte-educadora no ateliê Lola-Ufus, de Porto Alegre, Julia Hauser costuma se entusiasmar especialmente com os desenhos dos alunos com cerca de cinco anos. A cada manhã, dá bom dia aos seguidores das suas redes sociais com a obra de um deles.
— O desenho dos pequeninhos é mais expressivo justamente porque eles ainda não estão nesse sistema escolar mais clássico, de notas e avaliação, que estimula competitividade. Isso reflete muito na autoestima, de repente a criança começa a ter mais vergonha e para de mostrar o que faz. Já os pequenos não têm medo de errar, e o resultado é uma coisa muito própria, autoral.
Enquanto a maioria das pessoas vai deixando a criatividade arrefecer aos poucos, os artistas seguem treinando o olhar e exprimindo em imagem o que não pode ser dito com palavras. Tornam-se fluentes em uma linguagem visual, o que, para Susana, é tão importante quanto saber escrever ou falar, as formas de comunicação que foram consagradas como as linguagens do conhecimento pela cultura ocidental. Segundo a especialista, o desenvolvimento da linguagem visual deveria ser um dos objetivos da Educação Infantil.
Por meio da arte, as crianças conseguem expressar seus pontos de vista de maneira singular e pessoal. Não é a toa que, com frequência, um adulto confunde o que está representado em um desenho infantil. Esta repórter, por exemplo, enxergou a figura de um homem caminhando na aquarela de Rafael, aluno de sete anos da escola de arte Ateliê Oca. O autor elucidou:
— Fiz um macaco correndo e jogando sementes na terra. (Eu sequer havia reparado nas sementes, essenciais à obra.)
Durante minha visita, Rafael e outras seis crianças se dedicavam à oficina de aquarela. Depois de recitar um poema de Cecília Meirelles sobre um jardim e observar as flores pintadas por Beatriz Milhazes, a turma foi desafiada a criar seus próprios jardins. Mostrar às crianças obras de artistas famosos é uma estratégia da escola.
— Com a aquarela, por exemplo, eles aprendem a dar valor ao que é “manchado” — explica a psicanalista e coordenadora do projeto Ateliê dos Arteiros, Anelore Schumann, reforçando que ali o objetivo não é registrar com fidelidade o que enxergam: – Por isso a ideia de puxar pelos artistas, para mostrar que o ideal não é o “certinho”.
O esforço do ateliê é combater clichês, disseminados por propagandas e desenhos animados, expondo as crianças à arte. Com mais referências, seus desenhos podem se diferenciar, sair do literal e entrar no poético.
Ao acessarem o mundo pela via da arte, aprendem a questionar o “normal” e aceitar o “outro”.
Descoberta de técnicas e de paixões improváveis
Diante do desafio de representar o mundo, as crianças antes precisam aprender a ver melhor. No momento de criar, exercitam diferentes habilidades técnicas, dependendo da linguagem escolhida. Com desenho, por exemplo, entendem a lógica da luz e da sombra, e como a segunda pode ser usada para dar volume. Ao eleger as cores de uma pintura, vivenciam as diferentes cargas de expressão afetiva de cada uma. Ao misturá-las, testam a teoria das cores, presenciando o amarelo e o azul combinando-se em verde, por exemplo. Organizando elementos em uma folha, raciocinam sobre espaço. Esculpindo, aperfeiçoam a motricidade fina. A lista parece não ter fim.
A arte desperta até mesmo paixões improváveis, como a de Miriam, seis anos, que vibrou ao receber a tarefa de organizar os lápis espalhados pela sala do Ateliê Oca:
— Adoro arrumar. Pagava até R$ 10 para arrumar uma casa.
A simples convivência nas aulas de arte traz benefícios como aprender a trabalhar em grupo, respeitando outras visões e compartilhando descobertas. Entre os alunos do Ateliê Oca, a experimentação com materiais diferentes tornou-se uma brincadeira repleta de ensinamentos. Naquela tarde, Pedro, seis anos, usou uma vela para riscar uma página. Nada apareceu até que cobriu a superfície com tinta e viu seus traços surgirem sob a cor. Pouco depois, recortou formas geométricas em um papel.
— Olhem minha mágica! — gritou para a turma, anunciando uma criação inédita.
Ali ao lado, Marina, sete anos, olhava com menos confiança para a aquarela de uma boneca.
— Não ficou bem do jeito que eu queria – lamentou, mas em seguida localizou outro trabalho para me mostrar: — Não tem problema, esta flor ficou.
Marina exercitava assim outras habilidades: fazia sua própria autocrítica, aceitava o erro e, por fim, valorizava o próprio trabalho. Encontrava-se um pouco como pessoa.
"Desenhar certinho" não deve ser o ideal
Na história da arte, o século 19 é considerado o período no qual os artistas deixam de perseguir o registro fiel da realidade. Luz e sombra importam mais nos quadros impressionistas, por exemplo, do que a cena retratada. Para a pesquisadora Susana Rangel, as produções infantis tampouco deveriam corresponder ao mundo que vemos:
Em consequência da visão desenvolvimentista, os adultos não valorizam, por exemplo, a rabiscação, que é importante para as crianças. os adultos ‘aceitam’ as produções infantis quando reconhecem as formas: árvore, nuvem, casa, flores, corações... Mas não reconhecem que tais formas são estereotipadas, milhares de crianças as fazem. E o que as crianças deveriam fazer? Suas próprias formas, expressar suas compreensões de árvores de modo singular.”
SUSANA RANGEL
Doutora em Educação
– Arte é uma reinterpretação do mundo. Assim como os artistas, as crianças deveriam expressar seus pontos de vista.
No entanto, as teorias de aprendizagem do século 20 consolidaram o pensamento de que um desenho sofisticado é um desenho que se aproxima do que vemos. A psicanalista Katia Wagner Radke cita algumas referências de desenvolvimento:
– Para as crianças pequenas, a figura humana é um cabeção com pernas. Depois vai tomando forma, se sofisticando e chegando perto da imagem real. Espera-se que, quanto mais saudável a pessoa, mais detalhes e cores o desenho ganhe.
Segundo a artista e arte-educadora Julia Hauser, os parâmetros são mais claros durante os primeiros anos do Ensino Fundamental. Na prática, cada criança acaba percorrendo as etapas no seu próprio ritmo.
– As primeiras figurações da criança trazem ela no centro e as coisas orbitando ao seu redor. É o desenho orbital, quando ela ainda é muito autocentrada e está descobrindo a sua posição, sem prestar muita atenção nos outros. Lá pelos cinco anos, a criança começa a colocar as formas horizontalmente, o que é muito simbólico: colocar o outro ao teu lado – comenta.
Segundo Julia, o início do processo de alfabetização faz com que as crianças comecem a parar nesses estágios:
– Existe uma linha lógica de desenho que é esperado que a criança siga até os 10 anos ou 11 anos, mas isso várias vezes é interrompido antes por causa da prioridade dada à alfabetização.
Alguns especialistas renegam totalmente essa linha evolutiva, como Susana:
– Em consequência da visão desenvolvimentista, os adultos não valorizam, por exemplo, todo o período da rabiscação, que é extremamente importante para as crianças. Em geral, os adultos “aceitam” as produções infantis quando reconhecem as formas: árvore, nuvem, grama, casa, flores, corações etc. Porém não reconhecem que tais formas são estereotipadas, milhares de crianças as fazem. E o que as crianças deveriam fazer? Suas próprias formas, expressar suas compreensões de árvores de modo singular.
Julia concorda que os pais cobram figuras reconhecíveis e composições lógicas, julgam o desenho como bonito ou feio ao invés de tentar compreendê-lo. Para ela, isso nasce de uma incompreensão dos pais acerca da expressão infantil. Segundo a professora, uma estratégia melhor seria se aproximar dos trabalhos sem expectativas definidas:
– Por medo de magoar a criança, o adulto faz mil elogios, sem desenvolver muito. Perguntar características daquilo, fantasiar junto, ao invés de dizer “nossa, que lindo”, estimula muito mais. Por exemplo, se ela desenhar uma flor, perguntar que cheiro tem a flor, se desenhar um cachorro, perguntar se é brabo ou manso.
Katia Radke reforça que formas concretas não são sinônimo de talento. O importante é deixar a criança livre para se expressar como quiser.
– Quando falamos “isto é uma casa”, estamos dizendo que deveria ser uma casa. Estamos colocando a nossa interpretação. Para se aproximar do mundo criativo da criança, é melhor perguntar o que está acontecendo ali ou quem vive ali, por exemplo.
Susana Rangel sugere ainda que os pais ampliem seus repertórios do que é arte, frequentando junto dos filhos exposições e estudando as transformações que o campo atravessou no século 20, com o surgimento da arte contemporânea. E vai além:
– Sublinho que desenho e pintura são linguagens tradicionais e que as crianças, seus pensamentos e modos de lidar com a vida têm mais a ver com as linguagens híbridas da arte contemporânea. Então penso que deveríamos trazer a arte do nosso tempo para o convívio das crianças e usá-la como base do pensamento pedagógico em arte. Desenho e pintura com materiais e suportes tradicionais não causam mais desafios às crianças.
Cinco benefícios além das habilidades técnicas
- Desenvolvimento da criatividade: ao usar diferentes materiais, a criança faz descobertas que, por sua vez, estimulam a criação. Experimentando, aprende a arriscar, a aceitar o erro como parte do processo e a desenvolver processos de criação.
- Expressão pessoal: a arte possibilita a expressão de ideias e emoções de maneira não verbal, ou seja, é uma linguagem visual. Ao praticá-la, o indivíduo ganha instrumentos para expressar seus pontos de vista de maneira solta, singular e poética. Assim também conhece melhor a si mesmo e constrói a própria personalidade.
- Sensibilidade: ao ter contato com a arte, em exposições ou em sala de aula, o aluno exercita a capacidade de interpretação. Amplia seu repertório de imagens, entrando em contato com outras realidades e visões de mundo. Assim, aprende a respeitar e dar valor ao que à primeira vista pode parecer estranho ou feio.
- Esforço: tanto a criação quanto a fruição da arte exigem tempo, algo que está na contramão do imediatismo da sociedade atual. Ao desenvolver um projeto de arte, a criança vivencia a importância da disciplina, do esforço e da paciência para obter resultados.
- Socialização: trabalhar ao lado de outros alunos ou em grupo favorece a socialização. Ao mostrarem seus trabalhos aos colegas, descobrem que podem suscitar interpretações inesperadas e assim aprendem a ouvir sugestões e críticas.