A impressão 3D – tecnologia criada há três décadas para ser usada inicialmente na indústria automobilística – cada vez mais se aproxima da medicina. Se hoje as máquinas já ajudam na confecção de próteses personalizadas, na previsão de cirurgias delicadas e mesmo na criação de partes sintéticas do corpo humano, no futuro elas podem servir para a manufatura de grandes órgãos e mesmo para a criação de tecidos vivos. Para muitos, é nesses pequenos instrumentos que reside o futuro da saúde.
O princípio da impressão 3D segue a lógica da prima mais famosa, criada por Johannes Gutenberg por volta de 1450: em vez de tinta, é introduzido na máquina um material que pode ser em pó, gel ou filamentos, de plástico, metal ou a chamada biotinta – um polímero, normalmente o hidrogel, espécie de gelatina que retém muita água, contendo células –, ainda em fase experimental (leia mais abaixo). Unida a dados obtidos por exames de ressonância magnética ou tomografias, a tecnologia poderá acabar com filas de espera de transplantes.
Em março, uma equipe da Universidade de Tel-Aviv, em Israel, apresentou um protótipo de coração humano impresso: a estrutura conta com tecidos humanos e vasos sanguíneos, mas é do tamanho de uma cereja. Ou de um coração de coelho. Para que esse tipo de órgão possa ser útil aos humanos, falta muito. A vascularização ainda é precária, o material biológico para impressão ainda não é suficientemente estruturado e, sobretudo, há dificuldades em fazer o órgão realizar suas funções principais – o minicoração israelense até bate, mas não consegue bombear sangue. É um protótipo.
Mais próximo da realidade é o que foi feito com um chinês em 2014: identificado apenas pelo sobrenome Hu, o paciente de 46 anos caiu de um prédio de três andares e quebrou parte considerável de seu crânio. Ele sobreviveu, mas perdeu a fala, ficou com dificuldade de movimentação, visão prejudicada e com o rosto desfigurado. Uma malha de titânio impressa em 3D, com base em tomografias da cabeça do homem, foi implantada no local da lesão e, além de dar forma ao rosto de Hu, fez com que seu cérebro pudesse se recuperar com o espaço necessário – ajudando o homem inclusive a voltar a falar. O Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês), lançou em 2018 o NIH Print Exchange, site que agrega arquivos para impressão em 3D – ou seja, formas de órgãos, membros e objetos que podem ser baixados e inseridos em qualquer impressora ao redor do mundo.
— A impressão 3D é um potencial divisor de águas para a pesquisa médica — disse ao site Francis Collins, diretor do instituto.
Antes de pensar em imprimir corações ou cérebros, no entanto, a medicina vem usando impressão 3D em três áreas: as próteses customizadas, a reprodução de órgãos para análise anterior ou posterior a cirurgias e a substituição de corpos ou órgãos mortos. Em casos mais delicados, como na neurociência, esse uso pode evitar uma série de dificuldades.
— O grande problema dos exames como tomografia ou ressonância magnética é que você recebe todas as informações tridimensionais, mas vê em uma tela de duas dimensões. A impressora transforma isso em um objeto, um cérebro sintético, por exemplo, que você pega na mão, gira, olha por qualquer ângulo. Com isso, você pode simular uma cirurgia com muito mais precisão. Há também a possibilidade de, após a cirurgia, refazer os exames, fazer uma nova impressão e ver o resultado — diz Joel Augusto Ribeiro Teixeira, neurocirurgião do Hospital das Clínicas de São Paulo, que há pelo menos cinco anos tem a ajuda de uma impressora 3D em seu consultório.
Substitutos ósseos já são realidade
A fantasia de um Frankenstein moderno, com peças biológicas montadas artesanalmente e encaixadas no corpo, não é totalmente utópica: ossos, próteses, membros e pequenas partes mecânicas já foram testados com sucesso em humanos. Recentemente, um implante feito com impressora 3D salvou a vida do bebê americano Garrett Peterson, de 18 meses – sua traqueobroncomalacia, um defeito nos brônquios e na traqueia que impede a passagem de ar, foi resolvida com um tubo impresso sob medida e instalado em seu pescoço para desobstruir as vias aéreas. Em outro caso experimental, estudantes de engenharia da Universidade de Washington criaram um braço robótico para uma adolescente de 13 anos.
Conseguimos, por exemplo, moldar uma parte de um crânio que esteja fraturado. Fazemos também planejamento odontológico, para substituir as dentaduras tradicionais por um implante customizado. No máximo em 10 anos, vamos imprimir tecidos. Em 15, 20 anos, tubos e, quem sabe, órgãos completos.
LUIS ALBERTO LOUREIRO DOS SANTOS
Professor do Laboratório de Materiais da Engenharia da UFRGS
É nesse tipo de atuação que Luis Alberto Loureiro dos Santos, professor do Laboratório de Biomateriais do Departamento de Engenharia de Materais da UFRGS, foca sua pesquisa.
— Já há usos estabelecidos, como a impressão de substitutos ósseos. Conseguimos, por exemplo, moldar uma parte de um crânio que esteja fraturado. Para isso, usamos fosfato de cálcio, um material cerâmico que, além de substituir o osso, induz a formação óssea original daquela área. Fazemos também planejamento odontológico, para substituir os pinos e as dentaduras tradicionais por um implante customizado, que é mais preciso e muito mais rápido de se fazer — avalia o engenheiro, que estima um prazo de no máximo uma década para a impressão de tecidos. — Em 15, 20 anos, vai ser possível imprimir tubos e, quem sabe, órgãos completos – prevê.
Pesquisa e solidariedade nas iniciativas nacionais
Tornar os tradicionais gessos algo mais móvel, funcional e, por que não, bonito: é esse o foco da pesquisa de Kelin Luana Casagranda, terapeuta ocupacional que realiza sua pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Design da UFRGS. Com a ajuda de impressoras 3D, a sul-mato-grossense desenvolveu um método de criação de órteses (os aparelhos externos usados para imobilizar ou auxiliar os movimentos dos membros) que se ajustem às necessidades do paciente.
— Na minha área, a impressão 3D é algo fantástico, porque se consegue personalizar produtos que são feios, inacessíveis e, às vezes, pouco funcionais. Acho que, atualmente, a maior dificuldade é a falta de conhecimento e de acesso à tecnologia. É preciso desmistificar a ideia de que é algo inalcançável. Não, pode estar presente na rotina e trazer muitas facilidades — conta Kelin, que atua em âmbito experimental.
Ao redor do Brasil, iniciativas de pesquisa já começam a ajudar pessoas com a tecnologia – principalmente com malformação ou amputação de braços, mãos ou dedos. É o caso da Associação Dar a Mão, criada em São João do Ivaí, no Paraná, que oferece próteses em 3D para crianças e adultos no país em parceria com professores e estudantes da PUC-PR.
Ação semelhante realiza o Programa de Extensão Mao3D, coordenado pela professora Maria Elizete Kunkel, do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) da Universidade Federal de São Paulo, em parceria com o Centro de Reabilitação Lucy Montoro, de São José dos Campos. Neste caso, além de personalizadas, as próteses costuma ter temática de super-heróis ou personagens infantis. No site do projeto, o exemplo de maior orgulho é do menino Leo, de sete anos, que recebeu um braço com o modelo do Capitão América.
Biotinta é a aposta
— Uma prótese de quadril quebra um galho, mas nunca vai ser igual a um quadril. Para solucionar de vez, tem de fazer um quadril novo — explica Luis Alberto Loureiro dos Santos, professor do Laboratório de Biomateriais do Departamento de Engenharia de Materiais da UFRGS.
Só que, para isso, é preciso que os implantes, próteses, órgãos ou ossos, como no caso do quadril, sejam feitos de material orgânico compatível com o corpo humano. É essa a grande barreira que a tecnologia enfrenta para chegar ao ponto de imprimir partes do corpo humano. Entre cientistas e pesquisadores, não há uma estimativa objetiva sobre quando a biotinta – nome dado ao material para impressão que utilizaria células – estará consolidada. Os mais otimistas falam em 20 anos ou menos. É consenso que esse dia vai chegar.
— Sabemos que é uma possibilidade futura, mas não sabemos quanto tempo vai levar. Vamos começar com pele e vamos para algo mais complexo, como um coração — estima Felipe Marques, CEO da BioArchitects, empresa de tecnologia focada na área de saúde que usa a tecnologia 3D para apresentar soluções a clínicas e consultórios.
De volta ao caso do coração israelense, os médicos avaliaram que os pontos que ainda precisam de evolução são a multiplicação de uma quantidade suficiente de células cardíacas e o “processo de maturação”, pelo qual as células do novo coração poderão se sincronizar, provocar pulsações e finalmente permitir que o órgão funcione de forma autônoma. Mas entendem que, em cerca de um ano, conseguirão transplantar os primeiros órgãos impressos em animais.
UFRGS recebe sua primeira bioimpressora
Recém-chegada, a primeira bioimpressora do Estado ajudará pesquisadores da UFRGS a desenvolverem tecidos. O equipamento do Laboratório de Pesquisa II do Instituto de Pesquisa com Células-tronco vai, inicialmente, trabalhar com a produção de pele, diz a professora Patricia Pranke, da Faculdade de Farmácia:
— Embora pareça fina, a pele tem várias camadas. Então, não adianta fazer só o molde (como os feitos por impressoras 3D). Queremos produzir o molde, mas com célula, para regenerar a parte lesionada.
Patricia ilustra o processo:
— Na bioimpressora, enquanto eu faço as camadas, já estou colocando células em todos "os andares". Podemos dizer que uma impressora 3D imprime um "prédio", enquanto a bioimpressora faz o prédio com pessoas, com vida.