
Uma barra de chocolate, um pedaço de pizza, um hambúrguer, uma taça de sorvete. Para muitas pessoas, situações de estresse e ansiedade transformam, em um passe de mágica, comidas altamente calóricas em necessidade básica de sobrevivência. Os mecanismos por trás desse movimento ainda não foram completamente compreendidos pela ciência. Mas já se sabe que, do desejo à primeira mordida, há uma cascata de reações químicas, lembranças da infância e um apreço cultural pelo que está no prato – mais do que saciar a fome, ela serve também como carinho.
Na área médica, há um termo específico para o hábito: “comer emocional” ou “fome emocional”, quando recorremos a alimentos, em geral altamente calóricos (com muito açúcar, sal e carboidrato), para suplantar frustrações e cansaço.
Em inglês, usa-se o termo “comfort food” (comida de conforto) para aquela refeição que, normalmente, é consumida apenas em ocasiões especiais, mas que acaba sendo desfrutada quando há algo de errado na rotina.
Normalmente, o prato é caseiro ou relembra memórias da infância com a família ou amigos. Não à toa, comerciais na televisão se esforçam em vender produtos artificiais com “o gostinho da vovó”, com cenas de uma família feliz na cozinha.
Cuidado para não virar rotina
Profissionais afirmam que está tudo bem em desfrutar de um chocolate, uma pizza ou uma taça de vinho com prazer. Em idosos, muitas vezes esse tipo de comida é oferecido justamente para casos em que o paciente não se alimenta o bastante, sobretudo em vítimas de depressão.
Pesquisa com 277 voluntários nos EUA e no Canadá mostrou que, entre as mulheres, os catalisadores eram solidão, tristeza e culpa. Os homens reagiam ao desgaste após um dia produtivo de trabalho.
Mas é preciso prestar atenção se o hábito vira uma rotina e, todos os dias ao chegar em casa, você recorre à junk food para lidar com tristeza, raiva, tédio ou solidão. A longo prazo, pode-se entrar em um ciclo vicioso e sempre buscá-la em situações complicadas. Surgem, por consequência, os riscos de uma dieta desregrada decorrentes do sobrepeso: diabetes, doenças no coração e acidente vascular cerebral (AVC).
Há uma miríade de gatilhos da vontade de comer para ficar feliz. Uma pesquisa norte-americana e canadense feita com 277 voluntários apontou que, em mulheres, os catalisadores eram solidão, tristeza e culpa. No caso dos homens, por outro lado, entravam reações ao sucesso – como o cansaço após um dia estressante, porém produtivo. Em mulheres, estudos demonstram que, com frequência, o sentimento final é de culpa. Sobre elas, recai a maior pressão para atingir o corpo perfeito.
Quando nascemos, a angústia inicial é a fome. Essa sensação passa com a amamentação, que também acolhe e tranquiliza. Mas essa memória fica armazenada e é resgatada em outras etapas da vida. Mesmo sendo demanda emocional, e não alimentar, o sujeito busca a comida como remédio.
CLÁUDIO MARTINS
Médico diretor da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)
O alimento como acesso ao passado
A comida se torna refúgio, em primeiro lugar, porque damos a ela significados relacionados a prazer e alegria. Comer é, em suma, um ato cultural. Para muitas pessoas, refeições estão associadas a experiências positivas – frequentemente, comemoramos boas notícias com pessoas queridas ao redor da mesa.
Essa ligação é fortalecida se, ao longo da vida, criamos memórias agradáveis com a família na cozinha ou no bar. A consequência é a tendência a recorrer à comida para acessar os mesmos sentimentos do passado.
— Quando nascemos, a angústia inicial é a fome. Essa sensação passa com a amamentação, que, além de nutrir, também acolhe e tranquiliza. Mas essa memória fica armazenada e é resgatada em outras etapas da vida. A consequência é que, mesmo sendo demanda emocional, e não alimentar, o sujeito busca a comida como remédio — avalia Cláudio Martins, médico diretor da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
As comidas gordurosas também podem servir como consolo – o estresse daria carta branca para recorrer a um “pecado” cometido apenas em ocasiões especiais. Aqui, o alimento preenche um vazio – em outras palavras, a felicidade de comer substitui a infelicidade.
— O indivíduo desconta na comida porque não tem um espaço interno emocional para absorver uma experiência difícil. Precisa descarregá-la em ato, e come. Uma pessoa saudável, por ter desenvolvido relações positivas, acolhe dentro de si as emoções, sejam positivas ou negativas — reflete o psicanalista César Brito, membro da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) e professor na psiquiatria da PUCRS.
O turbilhão hormonal e neuronal que o estresse desencadeia
Há também uma reação química desencadeada por situações de estresse que culmina na vontade de comer comidas gordas. O processo ainda não é bem compreendido pela medicina, mas há algumas teorias.
Uma delas é de que a pressão no trabalho, a discussão com o parceiro ou o problema do filho na escola são situações desconfortáveis que, no cérebro, são interpretadas como ameaça. Sobem os níveis de cortisol, um hormônio útil em situações de fuga ou de luta por aumentar os batimentos cardíacos, para o oxigênio chegar mais rápido aos músculos. Só que outra consequência é tornar o corpo resistente à insulina, um hormônio que funciona como “porteiro” ao regular a entrada de glicose (alimento) para dentro das células.
Uma vez que as células estão resistentes à insulina, o corpo fabrica mais desse hormônio para compensar. E, quando há muita insulina no sangue, há fome.
Há o estresse que você pode resolver. Daí crescem os níveis de noradrenalina e cortisol, meu foco aumenta e como mais porque minhas necessidades calóricas subiram. Mas, se preciso aguardar outra pessoa fazer algo, entram a fome emocional e neurotransmissores como dopamina e serotonina. A pessoa usa a comida como forma de se defender contra uma pressão externa.
BRUNO HALPERN
Médico da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia
— Com muita insulina circulante no sangue, a reação do cérebro para que a glicose não baixe demais é pedir comida. E os alimentos que fornecem mais glicose são carboidratos complexos, presentes em farinha, arroz e batata — explica o médico chefe do setor de endocrinologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Rogério Friedman.
O estresse também ativa áreas do cérebro relacionadas à recompensa por comer, mostrou um estudo da Universidade de Deakin, na Austrália. Bruno Halpern, médico da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), acrescenta: pessoas que descontam emoções na cozinha, ao verem comida, ativam no cérebro o sistema límbico, ligado às emoções, e o hipotálamo, relacionado a funções básicas como fome e sede.
— O indivíduo vê a o alimento e tem uma vontade muito grande de comer. Pessoas obesas demoram mais para desativar essas áreas, então precisam comer mais para atingir prazer. Mas é difícil dizer especificamente qual neurotransmissor é ativado porque não é possível abrir a cabeça da pessoa e medir a quantidade presente — afirma o endocrinologista.
Há estudos relatando que a dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de recompensa, costuma ser liberada quando ingerimos comidas com altos teores de açúcar, sal e gordura. Esse efeito seria ainda mais acentuado se, por experiências passadas, você registrou no cérebro que, quando come chocolate, fica feliz. Há até estudos apontando que, em algumas pessoas, o cérebro libera dopamina só de pensar em tranqueiras.
O quase irresistível glutamato de sódio
A cereja do bolo é a serotonina, chamada de “neurotransmissor da felicidade”, cujos níveis sobem após a ingestão de chocolate, queijo e carboidratos. Mas não se sabe, aqui, se a produção de serotonina ocorre por causa do alimento ou simplesmente porque associamos que, ao comê-lo, ficaremos felizes.
— Alimentos calóricos, doces e com gordura estimulam a liberação de serotonina, que tem ação antidepressiva — diz Rubens Gagliardi, ex-presidente da Academia Brasileira de Neurologia. – Isso também é provocado pela tiramina (uma substância presente em vinhos e cervejas).
A indústria alimentícia também faz seu papel: produtos processados e crocantes, como salgadinhos, contêm em sua fórmula glutamato de sódio, um tipo de sal que ressalta o sabor de comidas ao hiperestimular nossas papilas gustativas a ponto de você simplesmente não conseguir comer apenas uma unidade. Mais difícil ainda de dizer não.
Vale a ressalva de que nem todas as pessoas descontam emoções no prato. Para muitos, a fome vai embora justamente em momentos de estresse e tristeza. Isso ocorre por várias questões, desde fatores genéticos até uma história de vida na qual a comida não é associada com lembranças positivas. Mas, segundo Bruno Halpern, da SBEM, geralmente, quem é magro emagrece e quem é obeso engorda, a depender do background genético. Ele acrescenta que até o tipo de problema influencia na resposta que teremos.
— Existe o estresse que você pode resolver e aquele que você não tem como, porque aguarda a decisão ou avaliação de outra pessoa. Se tenho que resolver, crescem os níveis de noradrenalina e cortisol, meu foco aumenta e como mais porque minhas necessidades calóricas subiram. Mas, se preciso aguardar outra pessoa fazer algo, entram a fome emocional e neurotransmissores como dopamina e serotonina, porque a pessoa usa a comida como forma de se defender contra uma pressão externa — sintetiza.
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