"O que nos incomoda não é o que não sabemos. É o que temos certeza de que sabemos e que, no final, não é verdade." (Mark Twain)
Considerar aquele início de consulta como desconcertante pode parecer um exagero, mas o que aconteceu depois sobrou em originalidade e estranheza, a ponto de, passados vários anos, ainda lembrar do desconforto daquela introdução: "Antes de avançarmos na nossa conversa, o senhor tem que me prometer que, ao fim desta consulta, o senhor vai ligar para minha família e confirmar que eu estive aqui".
Quando lhe perguntei se eles tinham razão para não acreditar, ele respondeu sem escolher as palavras: "Sim, doutor, razões para descrença não lhes falta porque eles sabem que eu não gostaria de ter vindo".
Prometi que faria isso desde que me desse uma razão suficientemente boa para justificar que ele, um adulto de aparência normal, tivesse marcado uma consulta com duas semanas de antecedência para encontrar um médico que ele anunciava, com todas as letras, que não tinha intenção de conhecer.
"Eu entendo a sua surpresa, doutor, porque o senhor não conhece a minha família."
Foi só então que percebi que ele estava com falta de ar. E relaxei um pouco, por termos entrado num terreno onde transito com naturalidade, há muitos anos.
Com enfisema severo e já tendo esgotado todas as formas de tratamento clínico, ele parecia, de antemão, um candidato considerável para o transplante pulmonar. Mas a sensação de alívio pela perspectiva de ajudar durou pouco.
"Tudo começou quando meus filhos conheceram um paciente transplantado pelo senhor e me fizeram jurar que viria consultá-lo. Como não me empolguei, eles organizaram um encontro com o tal paciente, para que eu visse o que significava voltar a respirar depois de um transplante por enfisema. Por curiosidade, fui. Gostei do entusiasmo do meu companheiro de infortúnio, mas depois de 10 minutos de conversa ficou claro que só a doença, com sua falta de ar, nos assemelhava. Quanto mais ele falava do tempo de espera por um doador, dos pesadelos que tivera à espera de um chamado noturno, da preparação com fisioterapia, da semana na UTI e dos cuidados para que seis anos depois estivesse respirando maravilhosamente bem, mais me convencia de que os nossos modelos de felicidade em nada se pareciam."
Arrasado, prometi que ligaria para os filhos dele.
Com um certo fastio que não conseguiu disfarçar, ele me alcançou uma pilha de exames que seu clínico zeloso o obrigava a realizar todos os anos, provavelmente movido pela sensação de impotência de não ter conseguido convencê-lo a parar de fumar.
A capacidade pulmonar de 19% do previsto era a única e trágica disfunção. Por todo o resto, era um ótimo candidato ao transplante do ponto de vista médico.
Meia hora depois, eu já estava convencido de que ele tinha boas razões para debandar. Todos nós estamos dispostos a lutar pela volta da vida boa que já tivemos. Mas não podemos pretender igual entusiasmo para quem nunca teve. Custei a aceitar que isso existia. Quanto mais paixão temos pela vida, menos entendemos que alguém possa não tê-la.
Diante de um paciente portador de uma situação grave, mas com chance de recuperação, muitas vezes me sinto estimulado a abraçá-lo, numa oferta explícita de parceria. Naquele dia, chocado com a descoberta do quanto era inútil oferecer-lhe ajuda, me dei conta de que a tal parceria era uma alternativa derradeira. E o abraço outra vez me pareceu urgente. "Que bom que o senhor entendeu. Agora ligue para os meus filhos e os convença que o transplante não está indicado no meu caso. A pressão deles está me enlouquecendo. E nunca vou ter coragem de admitir que estou desistindo. Não posso deixar essa imagem".
Arrasado, prometi que ligaria.