"O preço de qualquer coisa é a quantidade de vida que você trocou por isso." (Henry D. Thoreau)
A necessidade de compatibilizar o tamanho do pulmão do doador com a caixa torácica do receptor sempre representou uma dificuldade adicional para o transplante pulmonar em crianças. Diante dessa exigência, idealizou-se uma técnica que prevê o uso da metade inferior dos pulmões de dois doadores adultos, para substituir pulmões inteiros destruídos por alguma doença da infância.
Esta técnica está reservada a pacientes pediátricos em uma condição tão crítica que não sobreviveriam à espera por um improvável doador cadavérico. O fato de que os doadores, por razões legais, devam ser familiares (na maioria dos casos, pai e mãe) favorece a evolução, reduzindo a probabilidade de rejeição.
A Santa Casa é o único hospital do hemisfério sul que realiza este tipo de transplante. De qualquer maneira, é uma indicação infrequente, haja vista que da nossa experiência total de 761 transplantes de pulmão (até agosto de 2024), apenas 40 envolveram doadores vivos.
O primeiro transplante desse tipo feito fora dos EUA foi realizado aqui, há exatos 25 anos, no dia 17 de setembro de 1999. O paciente, Henrique, um menino com quase 13 anos, era a imagem mais impressionante de insuficiência respiratória. Portador de uma bronquiolite (sequela de uma infecção viral que determina severa obstrução das pequenas vias aéreas), resultando numa impressionante hiper-insuflação dos pulmões, que o obrigava a dormir ajoelhado, porque sufocava ao deitar-se.
Inesquecível a cena do filho, da mãe e do pai entrando no bloco cirúrgico.
Com apenas 12% de capacidade pulmonar e uma expectativa de vida muito curta, o transplante se apresentava como única alternativa para evitar uma morte iminente. Trabalhando mentalmente com essa possibilidade, desde que assistimos à experiência inicial do doutor Vaughan Starnes, em Los Angeles, em 1996, tínhamos agora a desafiadora oportunidade de transformar uma fantástica proposta teórica em chance real de sobrevida para um filhote caçula de pais amorosos e desesperados.
Ensaiados todos os passos, marcamos a data: 17 de setembro, uma sexta-feira, dia do aniversário da minha mãe. Por pura ansiedade, acordei muito cedo naquele dia, mas relutei em sair da cama, como se fosse possível adiar o medo que me aguardava lá fora.
Inesquecível mesmo foi a cena do trio entrando no bloco cirúrgico: o Henrique ajoelhado na maca e gritando de falta de ar, a mãe chorando porque o filho chorava, e o pai, determinado como ele só, tentando, sem conseguir, acalmar os dois.
Foi só naquele momento que tive a exata noção do tamanho da empreitada: íamos operar três pessoas da mesma família. E então, perdida a chance de recuar, fomos em frente: Henrique na sala 1, Márcia, como primeira doadora, na sala 2, e Amadeo, na sala de recuperação, aguardando a sua vez.
Como ocorre com todos os cirurgiões, começada a operação o nível de concentração sobe, e a adrenalina do medo é substituída pela endorfina que brota espontaneamente da pretensa certeza de que, calma lá, essa cirurgia nós sabemos fazer.
Sete horas depois, concluídas as seis etapas que compõem essa operação, houve finalmente tempo de perceber que, até ali, tudo estava dando certo.
Aliviado e exausto, sentei-me no chão, um jeito pessoal de tratar o cansaço. Quando o Felicetti, parceiro de todas as horas, sentou-se ao meu lado e choramos abraçados, tive a certeza de que tínhamos feito uma coisa realmente grande. Há muito tempo aprenderamos que o choro dele era o melhor monitor do tamanho do que fizéramos.
Passados 25 anos, com o Henrique em vida plena, ficou arquivada na memória daquela sexta-feira a generosa premonição de que, um dia, o futuro haveria de dar sentido à densidade emocional do choro que choramos.
Minha mãe já não faz mais aniversários, mas sou grato pelos 22 anos em que festejamos juntos a feliz coincidência das datas.