Esqueça os possíveis benefícios que pequenas quantidades de álcool poderiam representar a sua saúde, conforme estudos divulgados até então. Uma ampla pesquisa publicada há duas semanas pelo prestigiado periódico científico The Lancet, baseado em dados de 195 países referentes ao período compreendido entre 1990 e 2016, revela que o efeito protetivo da bebida contra doenças cardiovasculares e diabetes é sobreposto pelo aumento do risco da incidência de câncer. A pesquisa, cuja principal autora está ligada à Universidade de Washington, nos Estados Unidos, é considerada a maior já realizada até hoje, em nível global, sobre os danos provocados pela substância.
"O consumo de álcool é um dos principais fatores de risco para diversas doenças e pode provocar perda substancial da saúde. Descobrimos que o risco de mortalidade de variadas causas, e especificamente por câncer, cresce de acordo com o aumento do consumo, e o nível de ingestão que minimiza os prejuízos para a saúde é zero", diz o texto. O volume considerado protetor até agora era de uma a duas doses de 10g de álcool cada (pouco menos do que uma cerveja long neck ou uma taça de vinho) ao dia — esse é também o consumo médio do brasileiro.
Vice-diretora do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), a psiquiatra Lisia von Diemen destaca que, entre os méritos do levantamento, estão a utilização de uma forma diferente de análise de dados, em relação ao que normalmente é feito, e a coleta de informações de fontes diversas, não só baseada no relato dos indivíduos (que costumam responder citando quantias abaixo do que de fato consomem).
— O mais importante deste estudo é mostrar que não temos embasamento científico para recomendar o uso de álcool para prevenir doenças do coração ou diabetes. Claramente, há uma diminuição para acidente vascular cerebral e infarto com dose baixa, só que, ao mesmo tempo, você tem um aumento de outros problemas relacionados ao álcool, como câncer e acidente de trânsito. O aumento de risco em outras áreas não compensa a diminuição de risco nessas áreas específicas — comenta Lisia, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Informações mal interpretadas
A médica atenta para algumas avaliações equivocadas que circularam pela imprensa nos últimos dias. A conclusão de que "então qualquer nível de álcool é perigoso" não é embasada pelo artigo. Os próprios autores esclarecem que não foi possível avaliar diferentes padrões de consumo de álcool.
— O que está sendo dito é que não há razões para recomendar o uso de álcool para reduzir o risco cardiovascular porque há aumento do risco de outras doenças, mesmo no consumo moderado. Além disso, as quantidades de consumo de álcool sugeridas hoje como de baixo risco devem ser revistas, em função do aumento de risco de outras patologias — esclarece Lisia.
Há grande variação individual quanto aos potenciais malefícios da ingestão de bebida alcoólica, segundo a professora:
— Quem tem história familiar de alcoolismo, por exemplo, terá um risco maior de desenvolver um transtorno por uso de álcool, assim como quem tem história familiar de câncer. Como o risco é diferente de um indivíduo para outro, é importante que isso seja levado em conta quando se toma a decisão de consumir álcool ou não e qual o padrão de consumo.
Os cientistas envolvidos na pesquisa também reforçam a importância de políticas públicas que mirem na redução do consumo de bebida pela população. Medidas como aumento da taxação sobre a venda, regulação da propaganda e restrições na disponibilidade do produto são sugeridas.
Quanto à relação entre álcool e câncer, o psiquiatra Pedro Eugênio Ferreira, coordenador do Ambulatório de Dependências Químicas do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), explica que a bebida diminui as defesas do organismo, especialmente em relação a tumores de fígado, boca, garganta, estômago e intestino. Uma das hipóteses sugere que o álcool danifica as células, que, ao tentarem se reparar, adquirem erros em seu DNA, culminando no surgimento de tumores malignos.
O etanol pode potencializar os efeitos nocivos do cigarro: a ação solvente do álcool facilita que produtos químicos cancerígenos encontrados no tabaco penetrem nas células do tubo digestivo, provocando câncer. A bebida alcoólica também está ligada à ocorrência de tumores nos tecidos mamário e colorretal. Por ser calórico, o álcool pode levar ao aumento de peso e à obesidade, fator conhecido para a elevação do risco de surgimento de vários tipos de tumores. E não se está falando apenas das ameaças à saúde de alcoolistas.
— Um bebedor moderado já tem aumentado o risco de ter câncer — salienta Ferreira, professor do Núcleo de Formação Específica em Neurociências da Escola de Medicina da PUCRS.