Antes mesmo de lavar o rosto ou arrumar a cama, Jaqueline Durgant, 53 anos, começa a manhã respondendo as mensagens de “bom dia!” no grupo da família no WhatsApp. Para ela, não é chateação – a empregada doméstica é uma das mais empenhadas em manter a tradição que liga os Durgant da Capital, do Interior e de Santa Catarina.
– Todo mundo tem que dar bom dia – explica. – E, se não responde, já chama no privado para ver se está magoado.
Invenção valiosa para aproximar o parente que mora longe, mas danada para quem tem pouca paciência ou pavio curto, o grupo de família no Whats chegou para ficar. A empresa não divulga estimativa de quantos existem, mas nem mesmo a família mais célebre do planeta escapa: no começo do ano, o marido de uma neta da rainha Elisabeth revelou ao The Daily Mirror que a realeza britânica também usa a ferramenta.
Além de notificações que não acabam mais, o resultado é um onipresente churrasco de domingo, a semana inteira, 24 horas por dia. Está tudo lá: corneta de futebol, discussão por causa de política, fotos constrangedoras, um festival de piada de tiozão (literalmente) e os monólogos da tia tagarela, que viram áudios de cinco minutos – ou mais.
O que está lá também, segundo a terapeuta cognitiva e professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS Carolina Lisboa, é um conflito de gerações entre quem já nasceu na era tecnológica e quem está começando a usar esses aplicativos. Isso explica as listas em blogs e perfis no Instagram com engraçados mal-entendidos envolvendo os mais velhos. Ou então é o parente de mais idade que pode não entender algum emoji ou abreviação e achar algum comentário dos mais jovens desrespeitoso.
Mas o grande perigo desses grupos é que na conversa pelo aplicativo não há todos os elementos da comunicação “olho no olho”, segundo Carolina, o que pode levar alguém a falar a coisa errada, na forma errada ou no momento errado – e iniciar um desentendimento.
– No grupo de família, já se tem o pressuposto de que todos são íntimos, então, há uma certa legitimidade para falar o que quiser. E no Whats ainda há a facilidade de mandar a mensagem com um clique. Às vezes, isso é uma bomba – afirma Carolina.
Depois de algumas brigas, a solução encontrada pela família de Rosangela Martins, 41 anos, foi fragmentar o grupo da Grande Família. Hoje, eles têm o grupo da esquerda, o da direita e um focado na organização de festas.
– Quando começamos com os grupos, nem me dava conta de que tinha tanta diferença (entre os parentes) – diz a funcionária pública.
"Celoca com amor"
O grupo de família dos Durgant (foto acima) é coisa séria. É por meio do “Celoca com Amor” – em homenagem à matriarca, que faleceu no ano passado – que os 18 membros espalhados por Jaguari, São Francisco de Assis, São Vicente do Sul, Porto Alegre e Guaramirim (SC) decidem desde quem vai cuidar do cachorro da irmã caçula enquanto ela viaja até o nome do bebê da sobrinha que está para nascer.
Como o grupo é dominado por gremistas, até é permitido falar de esporte, mas existe uma certa ponderação para assuntos como política: por causa de discussão desse tipo, o grupo chegou a ser deletado por quase três semanas.
A empregada doméstica Jaqueline Durgant não se isenta – inclusive, quando falou com a reportagem pela primeira vez, havia recém feito uma saída dramática do grupo:
– Me estresso. Saio. Volto. Brigo. É família.
Mas, desta vez, sua ausência não durou muito:
– Meus sobrinhos ficam me chamando no privado, dizendo: “Tia, tu faz falta. Ninguém manda as receitas que tu manda”.
Com apenas uma irmã, Fabiana, morando também em Porto Alegre, Jaqueline se sente perto dos parentes que tanto ama: pelo grupo, consegue até cobrar o sobrinho de 16 anos quando ele vai mal na escola.
O lado bom do grupo de família
O grupo no WhatsApp pode fazer parentes se sentirem próximos mesmo distantes, ressalta a terapeuta cognitiva Carolina Lisboa.
– Dá para mandar fotos do neto, ou então o prêmio que ganhou. Possibilita compartilhar experiências e coisas alegres – conta a professora, que participa de três grupos de família de diferentes tamanhos.
Ela relata que o grupo também é interessante para fins práticos, como organizar eventos ou pedir ajuda quando alguém fica doente, por exemplo.
E o lado ruim
Luciara Itaqui, presidente da Comissão de Psicoterapia do Conselho Regional de Psicologia RS, afirma que o WhatsApp tem aparecido muito em consultórios, onde diálogos mal resolvidos, feitos pela tela de um celular, incomodam na vida real. Ela sugere que as pessoas evitem deduzir coisas.
– A dedução afasta o diálogo – emenda.
A psicóloga lembra também que muitos grupos se valem do WhatsApp para decisões (como o tratamento de um parente idoso, por exemplo). Pode ser um facilitador, mas corre-se o risco de um dos membros não ver a tempo e não participar da decisão, o que pode gerar desentendimentos. Ela também lamenta que as pessoas muitas vezes deixem de conversar frente a frente para falar pelo Whats, e conclui: é importante preservar espaço do convívio familiar, pessoalmente.
Um prato cheio para as notícias falsas
Não é impressão sua: o grupo de família no WhatsApp é um celeiro de notícias falsas. Metade dos boatos que circularam no WhatsApp sobre a vereadora carioca assassinada em março, Marielle Franco (PSOL), foi propagado em grupos de família, segundo uma pesquisa feita pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital, da Universidade de São Paulo (USP).
Professor da Graduação em Comunicação Digital da Unisinos, Guilherme Caon observa que o WhatsApp é ainda mais propício para a disseminação desses boatos do que os encontros presenciais.
– Frente a frente é mais difícil largar uma fake news, porque as pessoas vão perguntar, vão te enfrentar, vão confrontar com outros dados. Agora, se eu estou longe, posso largar informação e ficar longe da discussão – analisa Caon.
Manual de etiqueta no grupo da família no WhastApp
- Deixe claro o objetivo do grupo. Não saber o que esperar do outro é o início para qualquer treta.
- Não transforme o grupo num chat. Quem fala muito, o tempo inteiro, pode ser visto como chato. E quem se pronuncia pouco pode ter suas participações até mais valorizadas.
- Se você quer falar com alguém da família em particular, não fale no grupo. Mande direto para a pessoa ou telefone para ela.
- Evite mandar aquele “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite” que termina no cumprimento, sem nada a acrescentar. Tem (bastante) gente que fica irritada com isso.
- Evite ironia e qualquer observação que não gere compreensão imediata. O mesmo vale para comentários de cunho religioso, sexual, político... eles podem gerar um bate-boca virtual sem fim.
- Se o grupo está muito chato, silencie-o. Para quem está no grupo de família por educação e acha rude sair, deixar de receber alertas e notificações pode ajudar.
- Respeite o tempo do outro. Muitas vezes, a pessoa não respondeu porque não conseguiu ainda, não quer dizer que ela não gosta mais de você.
- Evite piadas desnecessárias, mas tente não dar importância demais para a piada feita por outro. Olhe para ela de forma mais leve, não deixe uma informação criar tanto impacto.
- Se algo lhe incomodar demais, é melhor sair do grupo do que comprar a briga. Às vezes, ganha-se mais com ausência do que com fogo da discussão.
- Cuidado para não compartilhar fake news. Tem gente que manda uma notícia sem checagem, às vezes com a melhor das boas intenções, mas acaba propagando uma grande mentira.