A voz doce e pausada da Monja Coen, 70 anos, é um bálsamo para quem está ansioso. A fundadora da Comunidade Zen Budista Zendo Brasil, no templo Tenzui em São Paulo, tem uma trajetória diferente de monges clássicos, vistos como pessoas com uma vida inteira sacralizada: casou aos 14, teve uma filha aos 17, viveu em um monastério no Japão é hoje é uma das maiores lideranças budistas do Brasil. Em entrevista a GaúchaZH, ela defende a importância de fazer nada e diz que é possível ter ética sem ser religioso. Confira:
A espiritualidade precisa estar ligada à religião?
Não. A mente humana tem capacidade espiritual não necessariamente ligada a uma religião, que tem dogmas e um grupo no qual há formalidades. O contato com o mundo espiritual independe disso. Há muitas pessoas que vivem uma vida extremamente ética, com a percepção de que somos parte da vida da Terra, sem seguir uma religião. Uma coisa é fazer prece para uma religião específica, outra é entrar em contato com a essência do ser. Há perguntas que todos temos: que sentido tem a vida? Por que nascemos nesta época? Como usar minha vida para um bem maior do que meu bem pessoal? Isso tudo é espiritualidade.
Questionamentos assim são muito comuns à filosofia. Ela pode estar ligada à espiritualidade?
Com certeza. Grandes filósofos percorreram o caminho da espiritualidade, como Santo Agostinho. Algumas correntes filosóficas falam da percepção do ilimitado. Isso é mais importante do que ficar horas em orações e depois falar mal do outro ou não compreender o que os outros são. Isso não é espiritualidade, é o caminho mundano, de querer coisas materiais. Não que isso seja ruim, é bom querer coisas materiais, querer que as pessoas tenham o suficiente. Mas o caminho espiritual não é algo místico no sentido de falar com seres extraterrestres e imaginários ou esperar por milagres. Aliás, “milagre” vem de “maravilhar-se”. A gente pode se maravilhar com a natureza, o nascimento, a lua no céu.
A senhora tem hábitos que não associamos a uma monja: vê Netflix, usa Facebook, é youtuber. Isso não é contraditório à espiritualidade?
Você pode usar as redes sociais e a Netflix porque você escolhe o que vai assistir. Não sei se é porque sou monja, mas me mandam muitas coisas ligadas à espiritualidade e à filosofia. Eu não recebo o banho de Nutella (risos). Esses canais de comunicação estão aqui para nos ajudar, mas temos de fazer escolhas. Se não as fizermos, você definitivamente não desenvolverá maior capacidade de compreensão de si e do mundo.
Como manter o centro de equilíbrio em meio à montanha de estímulos das redes sociais?
Se no começo ficamos deslumbrados, aos poucos aprendemos a usar em vez de sermos usados. Há pessoas que são usadas – ou melhor, engolidas – pela tecnologia. Ficam tão fascinadas e não querem perder nada, porque parece que se perderem algo, sentem que ficarão de fora. Chega um momento de saturação, e a pessoa vai buscar novamente seus relacionamentos. Mas isso pode acontecer ou não.
A senhora fala sobre espiritualidade como estar ligado a algo maior. A alteridade e a tolerância estão ligadas à espiritualidade?
Claro. Mais do que tolerância, devemos ter compreensão. Posso não concordar, mas compreender pessoas com outras visões de mundo. Precisamos respeitar o ser humano. Às vezes, o ato é errado, mas a pessoa pode ser transformada. Se não acreditássemos nisso, nem haveria escolas. O outro é muito importante para isso. E o silêncio é importante para você se relacionar melhor.
Por quê?
Porque você ouve a si mesmo e se reconhece. E esse conhecimento de si permite um relacionamento mais fácil. Se alguém fala algo de você que você não é, você não vai se ofender. Por ser sensível, você terá um cuidado para não ofender nem ser rude. Momentos de silêncio no dia a dia são importantes no caminho da espiritualidade e do relacionamento. Para acessar níveis mais profundos da consciência, é preciso se aquietar. Se fico o tempo todo buscando estímulos neurais, minha mente fica agitada e não a conhecerei com profundidade. Preciso ter intervalos de quietude. Em Porto Alegre, há um grupo de “nadismo”. Achei bonito, não fazer coisa alguma por 20 minutos.
Hoje somos muito pautados pelo estímulo da produtividade, como se nosso valor próprio fosse externo a nós mesmos.
Sim, parar não é visto como algo bom. Em uma sala de espera, as pessoas pegam o celular para não perceber que estão esperando. Mas podemos ficar ali refletindo sem nos distrairmos. É importante estar presente onde está e apreciar isso. Somos capazes de apenas ficar. Se você consegue apenas estar presente sem provocar algo ao cérebro ou provar ao mundo suas qualidades, você encontra um estado de plenitude. Isso é o caminho espiritual.