Ciência e espiritualidade podem dialogar, defende Lama Padma Samten, 69 anos, líder budista fundador do Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB). A opinião soaria estranha, não fosse o fato de ele ter atuado como cientista e professor de física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) durante 25 anos. Pai de cinco filhos, ele deixou a universidade para estudar o budismo. Hoje, é considerado uma das grandes lideranças brasileiras da filosofia. Em entrevista a GaúchaZH, Padma Samten defende que o exercício da espiritualidade está relacionado à maior tolerância. E diz que precisamos estar abertos a novas visões de mundo, ao que chama de bolhas da realidade. Confira.
A espiritualidade precisa estar ligada à religião?
Na perspectiva budista, todo ensinamento está voltado a restabelecer a conexão com aquilo que somos. Naturalmente, a espiritualidade, por ultrapassar uma visão comum da realidade, está vestida de uma visão religiosa, que é a forma cultural pela qual esses ensinamentos perduram além do tempo. Mas, para o budismo, a espiritualidade está voltada a revelar às pessoas aquilo que elas já são e não sabem.
Como se voltar àquilo que somos e não sabemos?
Na ciência, se fala muito sobre como os cientistas pensam de uma determinada forma e depois descobrem que aquele pensamento não é suficiente. Como a mente se enganou? Também somos passíveis desses enganos: às vezes, o tempo passa e a gente descobre que poderia ter olhado de outro modo a realidade. Uma forma de penetrar na espiritualidade através do cotidiano é procurar entender como a mente decide o que é e o que não é verdadeiro. E como isso determina nossas emoções. A espiritualidade nos leva a duvidar das certezas e convida a entender como nossos preconceitos e fixações de visão se estabelecem. No budismo, isso tem palavra: avidia, que significa ignorância, estar preso a uma sensação de ver tudo e de entender tudo.
Desenvolver a espiritualidade ajuda a desenvolver tolerância?
Isso brota naturalmente com a compaixão. É importante entender como a mente constrói mundos e fica aprisionada a eles. Por exemplo: do ponto de vista da cultura contemporânea, reduzimos tudo ao paradigma econômico, que não inclui o tema ambiental. Podemos partir para outra visão maior. Não estamos condenados, mas se ficarmos presos a certo tipo de visão, ficaremos condenados. Um sofrimento recente é o sofrimento no campeonato de futebol. Não havendo campeonato, ninguém sofre. São mundos construídos que produzem sofrimentos correspondentes. O budismo entende que a liberação do sofrimento e a felicidade estão na dependência de nossa capacidade de ultrapassar paradigmas e fixações de nossa mente.
O senhor defende muito que reservemos tempo ao silêncio. Qual é a ligação dele com a espiritualidade?
No budismo, a forma mais clara de ultrapassar nossa fixação mental é ficarmos em silêncio. Nossas mentes estão condicionadas em meio a nossas atividades. Mas, quando ficamos em silêncio sem propósito, a mente se liberta desses panoramas mentais e retorna a um âmbito anterior à nossa entrada nas várias bolhas de realidade que usualmente penetramos. Essas bolhas são nossas preocupações enquanto familiares que somos, nosso trabalho, os horários que temos que cumprir. Somos peças dentro de engrenagens. Mas, em silêncio, ultrapassamos essas bolhas e retornamos a uma condição mais livre. Assim, nos distanciamos de nossas visões a ambientes limitados. A meditação sem nenhum conteúdo cognitivo ou emocional nos libera dos ambientes que aprisionam nossas possibilidades.
O senhor é também cientista e atuou por mais de 20 anos como professor de Física da UFRGS. Como conciliar ciência e espiritualidade?
Percebi que os cientistas nem se dão conta de encontrar essas limitações. No entanto, grandes mentes estudaram isso, como Niels Bohr e Ludwig Wittgenstein, este entre os filósofos. O Niels trouxe um elemento a mais não presente nas tradições orientais e ocidentais: a visão da complementaridade. Ela diz que nenhuma ação particular dá conta da realidade como um todo, então, não deveríamos considerar que visões diferentes são opostas. Niels diz que há muitas perspectivas, e o conjunto das diferentes visões possíveis é muito mais rico do que olhar a partir de uma única bolha de realidade. É uma visão pacificadora, onde escapamos da visão filosófica original que pauta nossa realidade sobre o certo em oposição ao errado. Se quisermos dar conta da realidade, é melhor entendermos a realidade do agronegócio, dos guaranis, da natureza – todas são diferentes, mas precisamos entendê-las. Isso é uma visão da física quântica, é a conexão que trago com a ciência.
Que mensagem o senhor gostaria de deixar aos leitores?
Nós podemos ser felizes. Não precisamos condenar nossos jovens a viver como nós. Precisamos sonhar realidades e deveríamos ser atores capazes de agir e transformar sem esperar que tudo se resolva a partir dos governos e dos poderosos. A população precisa desenvolver consciência e capacidade de realização, e não apenas cobrar soluções. A espiritualidade amplia nossa vida e nos traz felicidade, não tem contraindicações. A lucidez é a palavra essencial para definir espiritualidade. A espiritualidade sem liberdade de pensamento aprisiona as pessoas. A espiritualidade não colide com a ciência.