Todo paciente intui a sua real condição, ainda que possa se fazer de desorientado, na expectativa compreensível de que a negação, quem sabe, mude a realidade. Até porque é tudo o que pode esperar quando a realidade é ruim. Inteligente e sensível como era, o Felipe merecia ser poupado do verdadeiro "francocínio" do oncologista, numa dessas condutas absurdas cada vez mais adotadas por alguns médicos, que, desprovidos de qualquer compaixão, usam sadicamente a informação privilegiada para, numa visão obtusa, dar ao paciente a chance de se "preparar" para o que virá.
Como em sofrimento não existe preparação possível, este exercício gratuito de crueldade, com a antecipação da tragédia, significou apenas sofrer antes e mais. Centro emocional da família, não se permitiu fraquejar e assumiu várias vezes atitudes tão otimistas que, lá pelas tantas, instalou-se um clima de negação generalizada e todos passaram a viver cada dia como se o amanhã não fizesse a menor diferença.
Foram meses de convívio intenso, até que o tumor que não fora incluído no pacto, resolveu se manifestar. A compra de uma cama hospitalar e a contratação de uma auxiliar de enfermagem garantiram a infraestrutura mínima para enfrentar a tempestade que se aproximava. Três semanas depois, apoiada pelo médico, a família insone e exausta decidiu que tinha chegado a hora de interná-lo. Felipe acordou cedo naquele dia. Cada gesto tinha a morosidade e a atenção das coisas últimas. Comunicado pelo filho médico de que as bagagens já estavam no carro, pediu um tempo extra para dar mais uma circulada pela casa. Tentando não arrastar os pés, entrou no carro, e iniciaram um dos traslados mais deprimentes que se possa imaginar. O silêncio absoluto era a maior testemunha da tristeza.
Quando o filho acelerou para aproveitar o sinal, ele pediu que fosse mais devagar porque queria dar mais uma olhada na cidade. Cinquenta metros antes da entrada do hospital, ele pediu que desse uma volta na quadra, afinal, não era comum um céu assim, tão azul. E então, de quadra em quadra foram se afastando, até que anunciou: "Meu filho, vocês médicos pensam o hospital como uma trincheira, porque é lá que vocês salvam as pessoas. Mas agora me ocorreu que como eu não posso mais ser salvo, não tenho nada que fazer lá. Quero ir para casa, onde estão as coisas que escolhi, comprei e amei a vida inteira. Por favor, me devolva a minha trincheira, porque eu vou precisar muito dela". O jardineiro e a cozinheira foram os primeiros a cercar o carro na entrada do pátio, depois vieram os outros, e houve um abraço coletivo, demorado, sacudido e silencioso. Ele estava, outra vez, em casa. Com tudo nos seus devidos lugares, o Isidoro voltou a regar as flores, e a Zilda entrou para preparar o almoço. Ninguém se animou a comentar nada. O patrão tinha feito a coisa certa.