Atraso no desenvolvimento neuromotor, tônus muscular fraco (hipotonia) e compulsão alimentar (hiperfagia) são algumas das características de um problema raro, descoberto em 1956 por endocrinologistas: a síndrome de Prader Willi (SPW), que em maio tem seu mês de conscientização.
A médica geneticista Carolina Fischinger Moura de Souza, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica, explica que o problema surge de alterações que ocorrem geralmente ao acaso e afetam o cromossomo 15:
– É como se o cromossomo 15 fosse um livro da nossa biblioteca e tirassem um pequeno capítulo dele, levando embora uma série de informações importantes.
Leia também:
Mais de 80% das pessoas que sofrem de dor de cabeça se automedicam
Conheça o transtorno borderline, mal psiquiátrico que afeta as relações
Com maior rede de leite materno do mundo, Brasil ainda precisa de doadoras
O resultado dessa obra incompleta são sinais bem particulares, mas que nem sempre são identificados logo após o nascimento – período em que os tratamentos conseguem reduzir as sequelas. Conforme Carolina, bebês com essa doença nascem moles e demoram muito mais para conseguir sustentar a cabeça ou sentar, apresentam comportamento muito tranquilo e não costumam chorar à noite. Também pode haver dificuldade para sugar o leite da mãe, afetando aspectos como ganho de peso. Fisicamente, os sinais mais evidentes são face alongada, cabelos aloirados, pés e mãos pequenos, olhos amendoados, baixa estatura e mau desenvolvimento da parte genital.
Essas características perduram, geralmente, até os dois anos, época em que o processo se inverte: a partir dessa idade, as crianças com SPW apresentam um comportamento compulsivo por alimentos e tornam-se explosivos e teimosos.
– A síndrome é bem caracterizada por alterações em habilidades cognitivas como atenção, funções executivas, especialmente controle inibitório, memória de trabalho e autorregulação. Há, também, déficits de habilidades visuoespaciais, comportamentos de hiperfagia, birras, comportamento de mentir, ansiedade, tristeza, agressividade, autoagressividade, teimosia e falas repetitivas – descreve Maria Cristina Triguero Veloz Teixeira, professora do programa de pós-graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP).
Um dos problemas de mais difícil manejo é a hiperfagia.
– A compulsão alimentar é grande a ponto de eles juntarem casca de batata do lixo para comer. Normalmente, nas casas dessas crianças, a geladeira e os armários têm de ser trancados com cadeado – completa a endocrinologista pediátrica do Hospital de Clínicas Porto Alegre Leila Pedroso de Paula.
Dessa forma, as principais complicações da síndrome estão relacionadas ao comportamento compulsivo alimentar, que provoca obesidade e traz uma série de doenças como problemas cardíacos, respiratórios, hipertensão e diabetes 2.
Sem cura, a doença pode ser tratada com uso do hormônio do crescimento (GH), que deve ser ministrado o mais cedo possível, além de intervenções comportamentais e outros medicamentos.
– Infelizmente, o diagnóstico costuma ser tardio e ocorrer depois dos dois anos, quando a criança tem baixa estatura e entra na fase da obesidade – lamenta Carolina.
Quando iniciado antes dessa idade, o tratamento com GH melhora a composição corporal e a parte do desenvolvimento intelectual das crianças, reduzindo também a hiperfagia. Entretanto, ele não pode ser administrado em todos os casos. O hormônio é contraindicado se o paciente já apresenta quadro de obesidade severa ou problemas respiratórios.
Para os demais casos, o GH consegue proporcionar uma vida quase normal, controlando os comportamentos típicos da doença e melhorando aspectos neurológicos. Mas é preciso acompanhamento de uma equipe multidisciplinar por toda a vida.
O país do meu filho
Por Gustavo "Mini" Bittencourt, publicitário, pai do João Gabriel, cinco anos
Meu filho é brasileiro, mas muitas vezes parece que nasceu em outro país. Desde os primeiros dias de vida, ele sempre fez questão de se portar como um estrangeiro, como se tivesse orgulho de ter origem e cultura diferentes. Do jeito como ele chegou na nossa vida e como ele cresceu, parece que queria esfregar na nossa cara: o mundo é grande, muito maior do que o que vocês acham que ele é, não interessa quantas viagens tenham feito ou quantos filmes não-americanos tenham assistido. Não é nem que ele tenha vindo de longe, é que o lugar de onde veio simplesmente não está no mapa.
No lugar de onde ele veio, os bebês dormem a noite inteira e não choram de fome nos primeiros meses de vida. O que tirou nosso sono, tão brasileiros que somos. Depois, quando crescem um pouco, acaba a moleza. Para que comecem a caminhar e falar, precisam de ajuda assim como precisam se ajudar. Os primeiros passos e as primeiras palavras são resultado de muito trabalho – próprio e dos que vivem ao redor. Na verdade, não são meros resultados, são conquistas. Diferentemente do Brasil, sílabas e tropeços são comemorados como se fossem frases e maratonas completas.
No país do meu filho, a alimentação é toda diferente. Para um brasileiro, pode parecer maluquice, mas lá criança não toma refrigerante nem come porcaria. Existe bolo de aniversário sem açúcar, picolé de iogurte natural e ninho de Páscoa sem ovo de chocolate. Fruta é sobremesa, água saborizada é suco e massa é junk food. A comida nunca é a atração principal de um encontro. E, o mais incrível, ele sobrevivem! Aliás, é isso que faz eles sobreviverem e viverem melhor.
Meu filho é meio alemão, gosta de rotina e combinações; é também um tanto quanto tibetano, naturalmente alegre e bonachão; tem um lado argentino, dramático que só; alguma coisa de italiano, pois fala pelos cotovelos, gesticulando e alto; quando está concentrado, parece um monge zen japonês; costuma dançar feito um caribenho; e herdou dos pais, brasileiros, a capacidade de misturar tudo isso.
O país do meu filho se chama Prader Willi. É uma síndrome rara que causa, entre outros sintomas, hipotonia, dificuldade de desenvolvimento motor e cognitivo e um interesse por comida que, em muitos casos, chega à obsessão. Como todas as síndromes, têm um espectro tão diverso quanto um país. As pessoas com Prader Willi, assim como as pessoas com síndrome de Down, as pessoas com autismo, as pessoas surdas e os brasileiros, têm muitas coisas em comum e muitas diferenças. Parte do que são vem da genética e outra parte é resultado do ambiente em que crescem e do atendimento que receberam ao longo da vida, especialmente nos primeiros anos.
Como os brasileiros, as pessoas com deficiências ou condições diferentes têm sotaques – não só no jeito de falar, mas no modo de viver. São muitas, são múltiplas e são únicas. São cidadãs. Cidadãs da sua condição, cidadãs do seu país e cidadãs do mundo. De preferência de um mundo que relembre constantemente, todos os dias, que a variedade de formas de ser e de viver merece respeito e leis que garantam a sua cidadania. Mesmo que seja uma dupla cidadania.