O relógio ainda nem marcou 22h, e ele já está se preparando para dormir. É bem o horário em que ela está com a corda toda, querendo puxar conversa, assistir a um filme, planejar o dia seguinte, a semana, o mês, o ano. Cheio de sono, ele mal ouve o que ela tem a dizer. De manhã, a cena se inverte: lá está ele cantarolando no chuveiro, liga a televisão para sair de casa informado, reclamando de alguma coisa, falando sem parar. Ela fica só se perguntando de onde alguém tira tanta energia e assunto logo no início do dia.
Nossa vida é ajustada de acordo com as horas cronometradas nos relógios de pulso, na tela do celular, no painel do carro ou nos equipamentos instalados em paredes e movimentadas esquinas. São 22h para ele, assim como são 22h para ela. Só que existe um tempo que é interior a cada um, que rege o organismo de uma maneira bastante particular. Para além das horas convencionais, é o relógio biológico que determina se você é daqueles que acorda às 6h cheio de energia para gastar, ou se faz parte do grupo dos que se levantam às 11h implorando por mais uns minutinhos de sono.
O chamado relógio biológico é um sistema composto por vários relógios espalhados pelo corpo, controlados por um marca-passo que fica no cérebro. E o que fazem esses relógios internos? Um monte de coisa: são responsáveis pelo controle dos ritmos biológicos, geneticamente predefinidos, que regulam os horários de dormir, acordar, comer, ir ao banheiro, liberar hormônios, entre tantas outras funções diárias.
– Este sistema regula o nosso tempo interno e o ajusta conforme o tempo externo. A partir da luz, ele faz com que o organismo entenda que a cada 12 horas existe o claro ou o escuro. E, a partir disso, ele sincroniza todas as funções do corpo de forma encadeada. Não à toa, por exemplo, os hormônios são liberados de forma rítmica. Pela manhã, sou acordada devido a uma carga de cortisol. À noite, no escuro, é produzida a melatonina, o hormônio do sono. Da mesma forma são reguladas a temperatura do corpo, a pressão arterial e todas as demais atividades fisiológicas – explica Claudia Moreno, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Departamento de Cronobiologia da Associação Brasileira do Sono (ABS).
Os cronotipos
Dentro da cronologia, ciência que passou a ser estudada principalmente a partir da década de 1960, a complexa engrenagem que existe dentro de cada um faz com que a população se divida em alguns cronotipos, como são chamados os perfis dos relógios biológicos. Boa parte dos especialistas trabalha com três categorias, baseadas principalmente nos horários de dormir e acordar, uma vez que a liberação da melatonina (o hormônio do sono) funciona como um abre-alas para o desencadeamento de todas as demais funções.
Os matutinos representam 10% da população e são os que preferem acordar cedo, ficam sonolentos quando passa do horário de dormir (geralmente às 21h) e apresentam melhor desempenho no período da manhã. Os vespertinos, parcela que reflete outros 10% dos indivíduos, são os que estão mais dispostos por volta das 20h, preferem dormir tarde e têm dificuldade para acordar cedo. Devido à rotina, costumam ter menos horas de sono do que deveriam, e usam o fim de semana para reabastecer as energias. Os intermediários são a maioria (cerca de 80% da população) e conseguem se ajustar aos horários com maior facilidade do que os outros dois grupos.
Agora, pense na sua rotina: seria possível respeitar a engrenagem que existe em você? Dormir, acordar, ir ao banheiro, fazer sexo, comer, discutir o relacionamento e trabalhar nos horários em que o seu corpo está mais propenso para cada atividade? Se sim, comemore. Seguindo o "timing" correto do seu corpo, você terá desempenho máximo em tudo o que fizer, levará uma vida mais leve e longeva.
Só que essa é uma condição rara. Provavelmente a sua resposta para essas perguntas é um desanimador "não". É, a vida social nos impõe uma agenda própria que dificilmente pode não ser cumprida. Até aí tudo bem, o temporizador interno se ajusta a algumas situações. Agora, se o seu relógio estiver totalmente dessincronizado (como é o caso de trabalhadores noturnos e pessoas que estão constantemente viajando e alterando o fuso horário), preste atenção! Essa pode ser a causa das noites mal dormidas, dos quilinhos a mais, da falta de paciência com as tarefas do trabalho e até mesmo de doenças emocionais, como a ansiedade e a depressão.
Siga seu cronotipo e viva melhor
Você já deve ter lido reportagens e livros sobre o que e como fazer para ser bem-sucedido. "Como perder peso?", "O que comer?", "Como agradar o parceiro na cama?" são algumas das questões levantadas com certa frequência. Recentemente, um psicólogo norte-americano, Michael Breus, lançou um livro trazendo uma nova pergunta, cuja resposta, segundo ele, deve ser a chave para uma vida com mais qualidade: "Quando?".
Na obra O Poder do Quando (Editora Fontanar), nas prateleiras do Brasil desde a metade de fevereiro, o especialista em medicina do sono defende pequenos ajustes nos horários das tarefas diárias – como quando tomar uma xícara de café ou a melhor hora do dia para responder um e-mail –, adaptando-as ao relógio biológico (cronotipo) de cada um. Sincronizando o ritmo do dia com o ritmo da biologia, garante Breus, você poderá tirar o melhor de si e de seus relacionamentos.
– Para todas as atividades, sabemos que, quando feitas na hora certa, serão feitas melhor – afirma Breus, em entrevista concedida a Zero Hora por e-mail.
Incomodado com as limitações dos três cronotipos que boa parte dos especialistas adotam, o psicólogo desenvolveu uma categorização própria, inspirada em comportamentos de quatro mamíferos: golfinhos, leões, ursos e lobos. Conheça.
Como funciona o relógio biológico
1. O cronomestrista do corpo é o seu marca-passo circadiano, também conhecido como relógio biológico: um grupo de nervos chamado núcleo supraquiasmático, localizado no hipotálamo, logo acima da hipófise. Ele dá ordem a todos os ritmos biológicos do seu corpo.
2. Este temporizador é sincronizado principalmente pela luz solar, que o informa se é dia ou noite. De manhã, a luz do sol atravessa os globos oculares, percorre o nervo óptico e ativa este núcleo para recomeçar o ritmo circadiano (que compreende mais ou menos o período de 24 horas). Está sinalizado que é dia.
3. A partir da sincronização do temporizador, uma série de outros relógios começa a operar de forma encadeada. É como uma orquestra funcionando com vários instrumentos em sintonia. Por exemplo: de manhã ocorre a liberação do hormônio cortisol, e é por isso que você acorda. A temperatura do corpo sobe, a pressão corporal e o peso variam ao longo do dia, e hormônios, como o da fome e da saciedade, são liberados conforme esses relógios ordenam. Durante a tarde, a temperatura corporal diminui e se inicia novamente a preparação para dormir.
4. Quando está escuro, a intensidade de luz que chega aos nervos do núcleo supraquiasmático informa que é noite. Nessas condições, entra em ação a glândula pineal, responsável pela produção da melatonina, o hormônio do sono. E você dorme. Mas os relógios continuam funcionando, ordenando o funcionamento de todo o organismo (fazendo, por exemplo, com que você não sinta fome e não precise ir tantas vezes ao banheiro durante a noite). Quando amanhecer novamente, será desencadeada outra série de funções que ocorrem durante o dia.
Os prejuízos dos relógios desajustados
É na vida adulta (entre os 21 e os 65 anos) que se revela o verdadeiro relógio biológico de cada um. Antes disso, na infância, todos passam por uma fase matutina (ainda que o Ensino Fundamental se dê praticamente todo no período da tarde). Na adolescência, o predomínio é do cronotipo vespertino (ainda que aulas do Ensino Médio geralmente ocorram de manhã). Após os 65 anos, os idosos queixam-se de distúrbios de sono, e não raro se torna necessário dormir um pouco de noite e mais um tanto de dia.
Ou seja, de um jeito ou de outro, é bem provável que todos passem boa parte da vida enfrentando o cronodesajuste, como é chamada a dessincronizarão do relógio biológico em relação ao social. Isso se agrava ainda mais entre aqueles que trabalham no período noturno, os que não têm uma rotina fixa e os milhões de indivíduos que dormem tarde porque bloqueiam o sono (a produção de melatonina) com a luz azul, emitida por tablets e celulares.
– Serão felizes as pessoas que puderem respeitar o seu ritmo interno, que puderem dormir quando têm sono e ter todas as outras necessidades fisiológicas no horário em que o organismo disser "agora é meu horário". Só que, infelizmente, quase ninguém pode fazer isso, pois quem rege o nosso relógio é a sociedade – afirma Maria Paz Hidalgo, coordenadora do Laboratório de Cronobiologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Se não seguir à risca o seu relógio interno, pode ser que você só não esteja aproveitando o seu rendimento máximo nas tarefas diárias – o que já é ruim, na avaliação do psicólogo Michael Breus, autor do livro O Poder do Quando. Mas pode ser que o seus os ponteiros internos estejam tão dessincronizados que tragam uma ação devastadora para o seu bem-estar físico, mental e emocional. Quem sofre mais, neste caso, são os "lobos" e os "golfinhos", ou seja, os de cronotipo vespertino e os de perfis extremos, que dificilmente se adaptam aos horários da sociedade.
– Uma pessoa vespertina, por exemplo, pode ter vontade de dormir somente a partir das 2h, porque é quando a melatonina dela é liberada. Ela vai para cama neste horário e, consequentemente, irá dormir até mais tarde. Até aí, tudo bem. O problema é se ela tem de trabalhar todos os dias às 7h. É aí que está o desajuste, que pode trazer muita dificuldade para a vida dela – avalia Claudia Moreno, pesquisadora da USP.
A regra número 1 do relógio biológico
Se adaptar o horário de trabalho ao próprio relógio biológico não for possível – uma opção nada simples em tempos de pouca de oferta de emprego – o recomendado é uma rotina que vale para todos os cronotipos: ficar exposto à luz solar o máximo possível durante a manhã. Ao voltar para casa, no fim do dia, evitar o excesso de luz e o uso de equipamentos eletrônicos. Não se alimentar tarde demais, não praticar exercícios físicos antes de dormir, não acordar em horários diferentes no fim de semana. É preciso manter uma rotina. E, acima de tudo, lembre-se: a regra número 1 do relógio biológico são as boas horas de sono. Sem elas, todas as demais funções serão arrastadas ao longo do dia no compasso errado.
– Pelo menos 30% das crianças e adolescentes têm distúrbios de sono, e eles podem ser muito mais danosos nestas fases da vida, que são as de desenvolvimento. É fundamental aprender a dormir desde cedo. E os pais têm de ajudar, sabendo que o sono deles não é o mesmo do dos filhos, que não está certo deixá-los dormir no sofá da sala, em frente à TV. As crianças têm de ter o quarto delas, onde devem se preparar para dormir, com uma luz fraca, a leitura de um livro e, definitivamente, longe dos equipamentos eletrônicos – recomenda Felipe Kalil, neurologista infantil do Hospital São Lucas, em Porto Alegre.
– Quando adultos, levantamos cedo porque temos de fazer exercícios físicos, levar os filhos para a escola, assistir às notícias, ler todos os e-mails. E só dormimos quando sobrar tempo. Preocupados com a boa forma, procuramos um personal trainer.
De olho na dieta, consultamos uma nutricionista. Está correto. Mas e o sono? Dificilmente alguém tem a mesma preocupação com as horas dormidas – complementa o neurologista Geraldo Rizzo, coordenador do Centro de Distúrbios do Sono do Hospital Moinhos de Vento.