Guru do parto natural, o cientista e obstetra francês Michel Odent costuma dizer que o seu trabalho é formular perguntas. Nem sempre foi assim. Por mais de duas décadas, entre 1962 e 1985, ele foi responsável pela maternidade de um hospital público em Pithiviers, no norte da França. Acabou sendo encarregado dessa função por acaso. Odent trabalhava como cirurgião e conhecia a técnica de cesárea, que prometia revolucionar a obstetrícia e que hoje tanto preocupa, pela banalização.
– Qual o futuro da nossa espécie se quase todas as mulheres se tornarem mães sem dar à luz? – questiona.
A grande preocupação do francês, referência mundial em obstetrícia e parto natural, diz respeito ao futuro de uma civilização nascida sem o coquetel de "hormônios do amor", liberados apenas em condições específicas de trabalho de parto, o que normalmente não ocorre na cesariana agendada.
Radicado na Inglaterra, Odent popularizou o parto na água nos anos 1960, ao introduzir piscinas no ambiente do nascimento. É um dos precursores do movimento de humanização do parto, embora critique o termo. Para ele, mais do que "humanizar", é preciso "mamiferizar".
Autor de 10 livros traduzidos para cerca de 20 idiomas, Odent é fundador do Centro de Pesquisa em Saúde Primal, em Londres. O banco de dados reúne artigos científicos que correlacionam o período primal (gestação, parto e primeiro ano de vida) com a saúde e a personalidade na vida futura.
Aos 86 anos, Odent conversou com ZH por e-mail. Foram diversas mensagens em um mês, período em que o médico esteve em pelo menos três países. Questionado sobre sua vitalidade, resumiu em uma frase a origem de tamanha disposição:
– Escolhi minha mãe com cuidado.
Leia também:
Bela Gil revela que comeu placenta após o parto. Saiba o que diz a ciência
É possível ter alta hospitalar poucas horas depois do parto?
Melania Amorim: "Há um abuso de cesáreas sob pretextos fúteis"
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), há uma epidemia de cesarianas, e o Brasil é um dos líderes mundiais. As mulheres estão perdendo a capacidade de parir?
Sim, existem razões que nos levam a acreditar que as mulheres estão perdendo a capacidade de dar à luz. Uma síntese de estatísticas recentemente publicadas sugere o aumento das dificuldades dos nascimentos modernos. Tendo estado envolvido com partos há mais de 60 anos, destaco a importância de um estudo americano sobre mudanças nos padrões de trabalho de parto ao longo de 50 anos.
Os autores compararam um primeiro grupo de cerca de 40 mil nascimentos ocorridos entre 1959 e 1966 e um segundo grupo de quase 100 mil nascimentos ocorridos entre 2002 e 2008. Depois de levar em conta muitos fatores, como idade, altura e peso da mãe, constatou-se que a duração do primeiro estágio do trabalho de parto foi dramaticamente maior no segundo grupo. Foram duas horas e meia mais no caso de um primeiro filho, e duas horas nos outros casos. Para os profissionais da minha geração, este estudo está demonstrando o óbvio.
O senhor defende que mais do que humanizar é preciso "mamiferizar" o parto. Por quê?
É comum afirmar que os nascimentos humanos são difíceis por razões mecânicas. Para explicar essas dificuldades, círculos acadêmicos mostram desenhos comparando o tamanho e o formato da cabeça do bebê com o canal pélvico materno. Como explicar que, ocasionalmente, mulheres que não são especiais – morfologicamente falando – conseguem dar à luz o seu primeiro bebê com facilidade dentro de alguns minutos, enquanto outras precisam de uma cesariana após 48 horas de trabalho de parto?
A resposta para esta pergunta é dada pelos poderosos efeitos inibitórios do neocórtex (parte do cérebro responsável pelo raciocínio lógico), que é altamente desenvolvido apenas em nossa espécie. Em algumas situações, o nosso poderoso neocórtex, ao invés de ser uma ferramenta a serviço de funções fisiológicas vitais, tende a obscurecê-las. Este é o conceito de inibição neocortical, uma chave para a compreensão da natureza humana em geral e do nascimento humano em particular.
Por quê?
A redução no controle neocortical é a solução encontrada pela natureza para tornar o nascimento humano possível – e até mesmo ocasionalmente fácil. É por isso que as mulheres que dão à luz facilmente, sem qualquer necessidade de assistência farmacológica, agem como se estivessem em outro planeta. Elas esquecem o que está acontecendo ao seu redor, gritam e xingam e adotam as mais estranhas e inesperadas posturas de mamíferos. Por isso, a necessidade básica de uma mulher em trabalho de parto é ser protegida de todas as estimulações do neocórtex, particularmente a linguagem, a luz e todos os aspectos da socialização. Quando o neocórtex está em repouso, os seres humanos têm mais semelhanças com outros mamíferos. No período em torno do nascimento, a questão é eliminar o que é especificamente humano.
Então, do que exatamente uma mulher precisa para dar à luz?
A perspectiva fisiológica está nos ensinando que uma mulher em trabalho de parto precisa se sentir protegida contra todas as situações que podem aumentar seus níveis de adrenalina ou estimular seu neocórtex, como luz, comunicação verbal, temperatura muito baixa ou a presença de alguém que está com medo, já que a liberação de adrenalina é contagiosa. Quando os mamíferos – incluindo os mamíferos humanos – liberam hormônios de emergência da família da adrenalina, não conseguem liberar a ocitocina, que é o principal hormônio durante o processo de nascimento. Mas não é o negócio dos fisiologistas fornecer receitas. Entre os seres humanos, deve-se levar em conta o condicionamento cultural. Por exemplo: uma mulher precisa da presença de uma parteira maternal altamente experiente para se sentir segura. Outra pode precisar dos bipes de uma máquina eletrônica. Na verdade, essas mulheres têm as mesmas necessidades básicas.
No Brasil, defensores do parto natural são, muitas vezes, tachados de radicais. Como o senhor responderia a essa crítica?
Defensores do parto natural nem sempre são radicais. Se eles fossem realmente radicais, eliminariam do vocabulário variações da palavra "ajudar", como "apoiar" e "orientar". Da perspectiva da fisiologia moderna, não se pode evitar um processo involuntário. Então, a palavra-chave é "proteção".
Uma frase de sua autoria, bastante conhecida, é: "Para mudar o mundo, primeiro é preciso mudar a forma de nascer".
Se não aceitarmos e assimilarmos as lições da fisiologia moderna – particularmente os conceitos de "inibição neocortical" e "antagonismo adrenalina/ocitocina" – a questão será: "Qual o futuro da nossa espécie se quase todas as mulheres se tornarem mães sem dar à luz?".
Quais os efeitos negativos do abuso da ocitocina sintética, hormônio utilizado para induzir ou acelerar o trabalho de parto? Há estudos que dizem que pode ser uma das causas do aumento dos casos de autismo.
Nunca foi seriamente estudado, embora seja a intervenção obstétrica mais comum no planeta. É provável que os efeitos a longo prazo sobre a criança sejam subestimados.
Há resistência de entidades médicas quanto ao parto domiciliar. É seguro dar à luz em casa?
Em nossas sociedades, dar à luz em casa ou em um hospital é geralmente uma escolha. Estudos que comparam a segurança de diferentes ambientes de nascimento não têm valor científico. Então, essa visão será diferente no dia em que as particularidades da placenta humana forem levadas em conta, e quando o período perinatal for estudado a partir de perspectivas imunológicas. Idealmente, os bebês humanos precisam nascer entre uma grande diversidade de micróbios familiares.
Por que isso é importante?
Um século atrás, a maioria das mulheres dava à luz em ambientes bacteriologicamente familiares e diversificados. Hoje, é o oposto. Pode-se afirmar que, do ponto de vista bacteriológico e, portanto, imunológico, o período perinatal é uma fase da vida humana radicalmente alterada nas últimas décadas. Hoje, estamos em posição de entender que os milhões de micro-organismos que serão os primeiros a "ocupar o território" começarão a programar e a educar o sistema imunológico. Devemos perceber a importância do tema, uma vez que é sobre o desenvolvimento da saúde. Há, naturalmente, graus de como o ambiente bacteriológico é alterado no período perinatal – exposição a antibióticos e nascimentos por cesárea no ambiente estéril de uma sala de cirurgia são exemplos extremos. No dia em que uma mudança de paradigma nos levar a considerar o período perinatal a partir dessas novas perspectivas, será impossível ignorar novas questões sobre o futuro das desregulações do sistema imunológico, particularmente a prevalência de condições patológicas como as doenças alérgicas e as doenças autoimunes. Até agora, os estudos epidemiológicos inspirados por estas questões são excepcionalmente raros e tiveram que superar dificuldades técnicas, num momento em que o parto domiciliar é habitualmente marginalizado. Tem sido mais fácil contrastar o nascimento vaginal e o nascimento cesariano dentro do quadro de departamentos convencionais de obstetrícia. Como ponto de partida, precisaremos de estudos contrastando os partos domiciliares, por um lado, e, por outro lado, os partos vaginais nos hospitais.
Nesse aspecto, o parto domiciliar é mais vantajoso?
Um estudo holandês envolvendo mais de mil crianças, nascidas em um momento em que as taxas de partos domiciliares estavam acima de 25% no país, coletou dados do nascimento até os sete anos de idade. E constatou que o parto domiciliar, comparado com o parto vaginal no hospital, foi associado a um menor risco de doenças alérgicas e asma. Do ponto de vista bacteriológico, não há substituto para o parto domiciliar, embora algumas atitudes adaptativas simples sejam possíveis. Provavelmente, haverá um momento em que será impossível ignorar as perspectivas bacteriológicas e imunológicas quando se aborda a questão do parto domiciliar versus o parto hospitalar. Um efeito de tal ponto de viragem histórico deve ser desmarginalizar o nascimento em casa e, portanto, torná-lo mais seguro. A questão é como adaptar o nascimento domiciliar ao estilo de vida urbanizado dominante.
O que sabe a respeito do seu nascimento?
Nasci em casa, em 1930, numa aldeia francesa. Minha mãe tinha 35 anos, e eu era o seu primeiro filho. Ela sentiu as primeiras contrações às 22h e o nascimento foi à meia-noite. Minha mãe costumava dizer que o dia de meu nascimento foi o dia mais alegre de sua vida.
Por que o senhor não aconselha a presença do pai durante o nascimento?
Evito dar conselhos precisos, embora eu tenha a experiência de milhares de nascimentos antes e depois das novas doutrinas sobre a participação do pai do bebê. Quando eu era estudante de Medicina com responsabilidades menores em uma maternidade de Paris, em 1953, ninguém imaginava que o pai do bebê pudesse estar presente. Esta doutrina desenvolveu-se de repente, em torno de 1970, como uma adaptação à concentração de nascimentos em grandes departamentos de obstetrícia. Antes, quando o nascimento em casa era comum, parto era "negócio das mulheres". Estou convencido de que, hoje, a participação habitual do pai, como um novo passo na história da socialização do nascimento, é uma das principais razões para nascimentos difíceis, particularmente em casa. Atualmente, tenho interesse especial na atração sexual do casal em relação ao que aconteceu no nascimento, e também na vulnerabilidade dos homens nos dias seguintes ao nascimento do bebê. Esses temas enormes não podem ser resumidos.
O que acha da prática de ingerir a placenta?
Parece que, na nossa espécie, a placentofagia nunca foi algo instintivo. Se tivesse sido em qualquer momento da história da humanidade, deveríamos encontrar vestígios desse comportamento em mitos, lendas e relatos de sociedades pré-literárias e pré-agrícolas. Conheço mulheres que atingiram um estado de consciência muito instintivo no período perinatal, mas nenhuma delas jamais manifestou a tendência de levar a placenta para a boca. As mulheres modernas que ocasionalmente comem pedaços de placenta foram inspiradas por teorias, como a que diz que a ingestão da placenta poderia prevenir a depressão pós-parto. O interesse científico na placenta inspirou recentemente tais teorias, levando a uma forma de placentofagia humana baseada em considerações racionais. No entanto, devemos evitar a conclusão de que comer placenta é um comportamento humano inato. Investigar a placentofagia é importante, uma vez que todos os mamíferos terrestres comem a placenta.
Conte-me sobre seu último livro, Pode a Humanidade sobreviver à medicina?.
Este livro é feito de pontos de interrogação que devemos ousar expressar em um ponto de viragem na história da vida na Terra. É por isso que pode ser apresentado por meio de uma grande diversidade de títulos, de acordo com o público a que é destinado. O ponto de partida das edições francesa e brasileira é uma questão inspirada no rápido desenvolvimento da medicina reprodutiva e na neutralização das leis da seleção natural. O ponto de partida da edição britânica é mais preciso: "Precisamos de parteiras?". De acordo com o público que estamos tentando alcançar, muitos outros pontos de interrogação podem ser selecionados para apresentar tal livro.
Como vê o movimento pela humanização do parto no Brasil?
Este movimento se tornará sério no dia em que a palavra "humanização" for considerada inapropriada. No período perinatal, a prioridade é eliminar o que é especificamente humano, particularmente a linguagem e os efeitos das crenças e rituais perinatais que foram transmitidos de geração a geração por todos os meios culturais desde o início da socialização do parto.
Que país hoje pode ser considerado referência em termos de assistência ao parto?
A "Terra da Utopia", onde substituíram a palavra "cuidado" (ele se refere ao sufixo da palavra birthcare, que em inglês significa parto) pela palavra "proteção".
Que conselhos o senhor daria para futuros médicos, enfermeiras e parteiras?
Eu sou um estudante interdisciplinar na natureza humana. Eu prefiro transmitir informações valiosas em vez de dar conselhos.
E para quem espera ou planeja um filho?
Evite ler muitos livros sobre o nascimento, exceto o antigo best-seller associando nascimentos difíceis ao consumo do fruto da árvore do conhecimento.
Sei que o senhor prefere fazer perguntas a dar respostas. Mas, após décadas de pesquisas, arriscaria um palpite sobre como será o futuro da humanidade nascida por cesariana, pela ocitocina sintética?
Esta é uma parte de uma pergunta mais ampla: "Quanto tempo a humanidade pode sobreviver após a neutralização das leis da seleção natural pela medicina reprodutiva?".