Para a maioria das pessoas, ouvir diferentes tipos de sons é algo tão comum que a possibilidade de não escutar músicas, buzinas de carros, o cachorro latindo ou o passarinho cantando é quase inexistente. Mas quem não nasceu com esse sentido ou ficou surdo em algum momento da vida sabe que uma cultura foi criada ao redor dos que não ouvem.
Uma vida de cuidados: RS lidera ranking de diagnóstico de fibrose cística
Mas a realidade ainda está longe da inclusão ideal no mundo dos ouvintes, em que a Língua Brasileira de Sinais (Libras) – principal forma dos surdos se comunicarem entre si e com outras pessoas – ainda é quase uma desconhecida.
Em nome do filho: Quando a gente vira pai e mãe de adolescente
Micael Rua Leite Martins, 25 anos, nasceu ouvinte. Escutava normalmente até os 11 anos, quando perdeu a audição depois que contraiu meningite. Já são 14 anos convivendo com a surdez.
Pet sitter facilita a vida de quem tem animais de estimação
– Foi bastante difícil, a família teve resistência em aprender a Língua de Sinais. Nos comunicamos por leitura labial e escrita. Na escola, o Micael sofreu bastante bullying. Mas, com o tempo, recuperou-se. Entrou na faculdade de Direito na UFSM, mas acabou trancando, um pouco em função da dificuldade de comunicação – explica a irmã do rapaz, Tamires Leite, 29 anos.
Depressão em idosos pode ser detectada, tratada e superada
O jovem santa-mariense mora atualmente em Florianópolis, com a mãe. Foi lá, com a ajuda de muitos amigos e entusiastas de um grupo no Facebook, que ele teve a ideia de vender lanches para arrecadar dinheiro para fazer a cirurgia de colocação de um implante coclear – dispositivo eletrônico que oferece aos usuários uma sensação auditiva próxima a de um ouvido normal.
Segundo o otorrinolaringologista Pedro Luis Cóser, o implante coclear é indicado nos casos de surdez profunda, em que os aparelhos auditivos comuns não ajudam e a alternativa seria se comunicar apenas em Libras.
No Rio Grande do Sul, a cirurgia é feita pelo Sistema Único de Saúde (SUS), no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. No caso de Micael, que mora em Santa Catarina, há a possibilidade de fazer a cirurgia também pelo plano de saúde.
– Há quase 15 anos não ouço nada, mas ainda lembro do som de muitas coisas – comenta Micael.
De férias em Santa Maria, o rapaz resolveu divulgar o Sinal de Sabor, como batizou a iniciativa, pela cidade. Um amigo fez um cardápio em Libras, o que ajuda o cliente a fazer o pedido e se comunicar com o vendedor. Na internet, a foto com a “propaganda” do empreendimento de Micael já teve mais de 10 mil curtidas.
Por enquanto, ele vende os lanches em casa. A ideia, agora, é vender em eventos e instituições. Quando voltar para SC pretende dar continuidade ao negócio até conseguir o dinheiro necessário para a cirurgia, que custa cerca de R$ 30 mil. Mas a proposta, segundo ele, é, além de arrecadar o valor para o implante, incentivar o aprendizado de Libras e conscientizar os ouvintes.
Um longo caminho até a inclusão
Ao contrário de Micael, a estudante de Arquitetura e Urbanismo da UFSM, Thaís Trelha Prado, 23 anos, nasceu surda. Desde pequena, a mãe, Anelise da Silva Trelha, foi peça importante para o desenvolvimento da filha. Além de ser alfabetizada na Língua Brasileira de Sinais (Libras), a língua oficial dos surdos, ela também aprendeu, desde os três anos, a língua portuguesa. O esforço da mãe fez com ela se inserisse mais facilmente no mundo dos ouvintes.
Mas, apesar da luta diária pela inclusão e por uma sociedade com mais acessibilidade, percebe-se que o esforço ainda é pequeno do outro lado, do lado de quem ouve.
– A inclusão só é feita, de fato, quando todos em uma escola, por exemplo, sabem a Libras. A faxineira, a merendeira, o professor, o diretor... todos da comunidade escolar. O bom seria ter a disciplina de Libras na escola de ouvintes desde o Ensino Fundamental, para quando chegar à fase adulta, já saber se comunicar com o surdo. O que temos é o básico, um semestre na faculdade e só – comenta Anelise.
Sem considerar a necessidade de se adaptar ao mundo dos ouvintes e despreocupada com o fato de não poder ouvir, Thaís nunca achou que precisaria fazer a cirurgia de implante coclear. Pelo contrário, na visão dela, ser surdo não é defeito.
– Sou feliz assim, do jeito que nasci. Não faria a cirurgia, mas respeito quem toma essa decisão. Eu me comunico bem por meio da Libras e da língua portuguesa. Quem acha que surdo é incapaz ou não consegue aprender é porque não sabe nem conhece a vida do surdo – relata.
Comunicação é dever de todos
Pelo que a estudante sabe, a adaptação ao implante é bem complicada, com idas frequentes na fonoaudióloga para uma adaptação aos novos sons e percepções. Ela ainda prefere que a inclusão rompa a barreira da comunicação.
– Poucos sabem se comunicar com os surdos. Falta o ouvinte aprender mais, ter mais contato conosco. Muitos ainda debocham, acham bobagem nossa causa, mas não vamos deixar de lutar até todos os ouvintes nos entenderem e se conscientizarem (que somos iguais) – afirma a futura arquiteta.
Sofrendo com a falta de intérprete na faculdade, Thaís contou novamente com o apoio da mãe, que cursou Educação Especial para poder ajudar a filha.
– A luta do surdo é grande e contínua. Uns são mais ativistas do que os outros, mas estão sempre na luta. Estive um tempo parada, agora voltei a estudar e fazer curso de Libras novamente. Mas de modo geral, muitas vezes, a sociedade acaba provocando ou negligenciando o diferente. Isso é muito ruim. As pessoas são maldosas com as outras, isso ainda existe, infelizmente. O bom seria que o ouvinte soubesse se comunicar – acredita Anelise.