Médico, professor escritor e colunista do caderno Vida de Zero Hora, J.J. Camargo é especialista em cirurgia torácica. Mas outra de suas especialidades não foi ensinada na faculdade e é um título dado por ele mesmo: especialista em gente. Depois de 45 anos de atividade médica – 35 dos quais dedicados à medicina de alta complexidade –, ele afirma que a emoção é um privilégio que faz parte da profissão.
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Professor há 40 anos, dá aulas na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e uma das formas de conscientizar o estudante de Medicina sobre a importância de estabelecer um laço entre médico e paciente, é simular situações que levem o aluno a se posicionar. Como, por exemplo, quando é preciso informar uma família sobre um óbito.
– Dar aula está entre as coisas que eu mais gosto de fazer. Acho que a interação com o aluno é uma coisa fantástica.
Pioneiro em transplante de pulmão na América Latina em 1989 e o primeiro a realizar esse tipo de transplante com doadores vivos fora dos EUA, em 1999, o médico confessa que o medo ainda é um sentimento presente em várias situações.
Prestes a lançar seu novo livro, que reúne histórias de consultório, da prática cirúrgica, anedotas de sala de aula, do período em que fez estágio de pós-graduação e de congressos que frequentou, ele conta que a humanização da medicina é o que o faz querer dividir suas experiências.
– É uma excelente oportunidade para que as pessoas entendam que nós, humanos, temos um papel importante de interagir e somos muito omissos na relação com o outro. Especialmente quando o outro está precisando muito, quando o outro está sofrendo. Nós somos parceiros muito mais espontâneos na alegria.
Sobre a obra, o autor diz que é bom lembrar do momento que vivia quando escreveu cada crônica.
– O livro é uma coisa muito viva, é uma cria da gente. Por isso gostamos mais de uns do que de outros. Não só pelas histórias mas pelo momento que estava vivendo quando escrevi.
ENTREVISTA:
O que ainda o surpreende nas pessoas?
As doenças se repetem, e os pacientes são originais. Você não encontra duas pessoas que, em uma situação de sofrimento, sofrem de maneira idêntica. Os doentes são diferentes, o jeito de sofrer é original. Você coloca 10 pessoas na mesma condição de doença e terá 10 comportamentos diferentes. Porque nós somos diferentes no nosso jeito de encarar, de existir, de se resignar, de enfrentar, de superar, de sublimar.
O paciente chega ao hospital se sentindo inferiorizado pela doença. Qual o papel do médico na autoestima?
A primeira coisa é oferecer parceria para que ele se revele. Quando você faz uma consulta relâmpago como muitas vezes se vê, especialmente em ambulatórios de saúde pública, você parou de ouvir. Tem um trabalho mostrando que é de 16 segundos o tempo médio entre o paciente começar a falar e o médico interromper para formular uma pergunta para acelerar o processo. Os médicos modernos esqueceram que a base da medicina é ouvir. Muitas vezes se descobre depois de três ou quatro consultas que o paciente finalmente contou qual é a maior angústia que ele tem. Na medicina moderna, o paciente está cada vez menos vinculado ao médico. Isso tem despersonalizado a relação com danos para os dois lados. O paciente não se identifica com ninguém como parceiro do sofrimento e o médico está privado de conhecer pessoas com a intensidade que é possível se continuasse sendo o médico dele.
Sendo a solidão e o abandono um dos grandes medos de um paciente, como o senhor acha que as relações sociais e familiares influenciam no tratamento dos pacientes?
Estamos construindo um paradoxo. Estamos vivendo em ambientes cada vez mas povoados com pessoas que se sentem cada vez mais solitárias. Por várias razões. As pessoas pararam de conversar, porque elas estão fixadas em outras formas de comunicação. Estão construindo a solidão mais paradoxal que existe. Você está no meio da multidão e está sozinho. Quando houve o bloqueio do WhatsApp houve várias experiências interessantes em que irmãos até conversaram (risos). As pessoas tinham se desacostumado a conversar. Então, acho que existem várias coisas que influenciam a solidão. As pessoas estão muito introvertidas em relação às suas necessidades pessoais e dividem muito pouco o que sentem com os outros. E isso é muito importante se você está fragilizado com a doença. A pessoa poder confiar a alguém o que está sentindo, poder contar o medo que tem, é uma maneira de se libertar da maior parte do medo. A maior parte dos medos são fantasiosos. Quando se consegue falar deles, as pessoas falam que tiraram um peso. Tirar o peso é compartilhar. Não é eliminar, é dividir o peso.
Como o senhor vê hoje a relação entre médico e paciente? O senhor observa que ela esteja, de algum modo, ou mais fria ou mais calorosa?
Acho que os médicos estão sendo estimulados a buscar corrigir essa discrepância entre médicos muitos mais qualificados do que antigamente. Os pacientes idosos se queixam de que eles têm saudade do médico da família, do médico que era amigo deles. Isso é um paradoxo. A classe médica sabe mais e os pacientes idosos têm nostalgia dos médicos de antigamente. Em algum lugar nós erramos o caminho. Quando eu fui convidado pra escrever regularmente no jornal eu vi a oportunidade de tentar humanizar isso. E a julgar pelo número de convites que eu recebo de escolas médicas, e de academias, ficou muito evidente pra mim que os médicos estão se dando conta de que essa é uma área que está completamente descoberta. As escolas médicas ensinam a fazer diagnósticos e tratamentos, mas não ensinam a ser médico. Eu trabalho com graduação e com residência, no fim de cada aula, simulo uma situação hipotética para discutir com os alunos. Então, anuncio que, a partir daquele momento, sou o paciente e eles irão propor a solução para a situação que eu elaborei, para que a gente possa discutir detalhes de como fazer isso. Por exemplo: estou indo para o hospital e eles precisam me contar que meu pai morreu. Tem de ver o pânico que ficam. Eles não sabem como dizer isso. É uma situação muito difícil, mas alguém tem de falar disso. Se não, sabe o que acaba acontecendo? O médico trata o paciente durante semanas e depois quem dá o diagnóstico é o porteiro do hospital, a enfermagem de plantão ou, pior ainda, o agente funerário.
Qual é o papel do professor na formação da consciência do aluno a respeito da relação entre médico e paciente?
É simular situações que levem o aluno a se posicionar. Como é que você diz ao paciente que ele tem que ser operado, por exemplo? Qual é o cerimonial que isso exige? Isso é um cerimonial. Porque o grande conflito que existe aí é o seguinte: de um lado você tem um médico fazendo o que faz como rotina, e a rotina é péssima para as relações humanas. O segundo problema é que a maioria das pessoas tem uma vida tão pobre de emoção que uma cirurgia grande, uma passagem pela UTI, uma quimioterapia, a julgar pelo número de vezes que eles contam essa história, é o pico de emoção da vida dessas pessoas. Então, o conflito é esse extremo, de um lado o médico fazendo a sua rotina e do outro o paciente vivendo uma emoção inesquecível. Se o médico não tiver a sensibilidade e a sutileza de se colocar, ainda que parcialmente, no lugar do paciente pra entender o que ele está pensando, essa relação está quebrada. E está quebrada irreparavelmente.
Como despertar essa sensibilidade nos jovens que estão se formando médicos?
Acho que tem várias maneiras, e a literatura é uma delas. Nós organizamos discussões que envolvem livros básicos que o indivíduo tem que ler. Porque a literatura é um socorro da medicina. E a medicina está pedindo socorro à literatura a algum tempo pra desenvolver no médico jovem, principalmente no estudante, essa maleabilidade de espírito capaz de tornar o diálogo com o paciente mais inteiro, mais real. Existem alguns livros que são fundamentais pra que se entenda o nível de sofrimento e da visão que o paciente tem da sua condição, e pra que ele possa interagir com o médico de forma doce e generosa.
O senhor fala da importância do médico criar um comprometimento afetivo com a família do paciente. Como é possível para um médico com tantos pacientes conseguir criar esse vínculo?
A gente não vai conseguir criar com todos e nem haveria muito sentido nisso já que há algumas situações que são muito agudas e passageiras. Mas a maioria dos médicos desperdiça a oportunidade de se aproximar dos pacientes como pessoas. Eles não se dão conta de que pequenos gestos já estabelecem vínculo. Por exemplo: entrar no quarto do paciente e falar em pé nos pés da cama. Isso é péssimo. Você pode ficar o mesmo tempo sentado no quarto. Se você senta e subtrai essa sensação de pressa, essa relação vai ser muito mais sólida. Eu acho que tocar nas pessoas é importante. Abraçar as pessoas é importante. E você descobre que quando você abraça as pessoas, você tem imediatamente uma resposta, uma reciprocidade de afeto que eu acho que é a coisa mais bonita de ser médico.
O senhor disse em entrevista para o caderno Donna que a coragem é a virtude mais indispensável para ser bem-sucedido, e que depois de realizar o primeiro transplante de pulmão da América Latina, teve a lucidez de saber que nunca mais seria o mesmo. O que mudou na sua maneira de olhar a Medicina e o paciente?
Aquela experiência foi incrível porque, como nunca tive a coragem que eu precisava, arrumei um jeito de dissimular isso. Montei um esquema que não me permitisse recuar quando surgisse a exigência. Lembro-me de quando eu fiz meu primeiro transplante com doador vivo, foi uma experiência muito dura. Imagina entrar o pai, a mãe e o paciente para serem operados, para tirar um pedaço do pulmão de cada um dos pais e substituir o da criança. Uma coisa horrorosa. Eu me dei conta do tamanho da enrascada quando entraram os três na sala. Aí, sair correndo não dá, então eu encaro. Três dias depois, ele estava ótimo e teve uma entrevista coletiva. A repórter perguntou quanto medo eu senti. E eu respondi que estava tudo tão ensaiado que eu nem tive tempo de sentir medo. Eu nunca me senti tão mentiroso quando eu pensei no que eu tinha dito. Como não deu tempo se eu estava morto de medo, em pânico. E fui capaz de dizer essa preciosidade. Mas que mentira (risos).
E o senhor acha que esse medo não mudou?
Tudo o que é desconhecido provoca medo e isso é normal. O medo nos protege e é uma blindagem pra loucura. Mas sentir medo faz parte. Meu avô dizia uma coisa maravilhosa: medo todo mundo tem, a diferença entre os medrosos e os corajosos é que os corajosos quando sentem medo correm pra frente. Achei isso de uma sabedoria. Medo todo mundo tem, correr todo mundo corre, a diferença é para onde você corre.
SERVIÇO ZH
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