Ao receber o Prêmio Nobel de Medicina em 1945 pelo desenvolvimento da penicilina, Alexander Fleming fez um alerta em seu discurso: o uso equivocado do medicamento poderia tornar os micróbios mais fortes. Sete décadas depois, o mundo se vê diante de um aumento de resistência das bactérias aos antibióticos, essenciais para prevenir e tratar infecções. Se nada for feito, podemos chegar à era pós-antibiótico, na qual eles seriam ineficazes, e doenças hoje facilmente tratáveis seriam causa comum de mortes.
Quem chama atenção é a Organização Mundial da Saúde (OMS), que publicou, em 2014, um relatório – após a análise de dados de 114 países – apontando para tal situação em todas as regiões.
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– As bactérias estão na Terra há 3,5 bilhões de anos e, para sobreviver, criam mecanismos de defesa. Se você usar antibiótico, vai estimular a produção desses mecanismos – explica Marcos Antonio Cyrillo, integrante do Comitê de Resistência Antimicrobiana da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). – O uso indiscriminado e inadequado está tornando as bactérias resistentes. Então, como vamos poder tratar uma infecção comum como a tuberculose, que afeta quase 10 milhões de pessoas por ano no mundo? – questiona.
A utilização de antibióticos para curar problemas de saúde, consequentemente gerando resistência, foi um componente que se juntou ao processo milenar das bactérias apenas em 1940.
– Quanto maior o uso de antibióticos, maior a resistência. Isso é algo esperado e natural. Mesmo a utilização apropriada gera um risco de tornar as bactérias mais fortes. Se o uso não é apropriado, o surgimento e o aumento de resistência ficam acelerados. Isso ocorre por várias instâncias: quem está administrando e quem está tomando são os primeiros que podem acertar ou errar, mas também há situações como a nossa realidade de pobreza, com pessoas com pouco recurso que conseguem comprar só parte do tratamento e param de fazê-lo antes do tempo indicado ou usam irregularmente – acrescenta o chefe do Serviço de Infectologia da Santa Casa de Porto Alegre, Paulo Behar.
Ao aviso da OMS junta-se o estudo coordenado pelo economista Jim O'Neill, por encomenda do governo britânico. Nele, consta que as perspectivas para os próximos períodos são ainda mais preocupantes: em 2050, o número anual de mortes causadas por infecções resistentes pode chegar a 10 milhões, e os custos que isso trará até a metade do século ficarão na casa dos US$ 100 trilhões.
O cenário projetado não requer, porém, que deixemos de usar antimicrobianos (termo mais abrangente que o antibiótico que inclui também substâncias que agem sobre outros micróbios e não somente sobre bactérias). Um dos caminhos, segundo os especialistas, está na utilização adequada das substâncias. Para isso, é fundamental um conjunto de ações que vai do paciente a órgãos internacionais, passando por profissionais da saúde, pela indústria farmacêutica e pelos governos.
– O uso na agricultura e na pecuária é muito preocupante. Existem possibilidades de criação de animais sem a necessidade de antibióticos. Outra questão é a dificuldade no controle de consumo desses medicamentos, principalmente dentro dos hospitais. Isso deveria ocorrer de forma sistemática, em uma política nacional – avalia a pesquisadora Marisa Zenaide Ribeiro Gomes, do Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).
Professora da Faculdade de Farmácia da PUCRS, Luciana de Oliveira frisa o uso incorreto como um dos principais desafios.
– Muitas vezes, crianças recebem antibióticos para problemas respiratórios que não são causados por bactérias. E há a questão de resistência em hospitais, pois, principalmente nas UTIs, esses medicamentos são usados de maneira muito intensa – ressalta a professora.
Prescrições desnecessárias
Entre as infecções que mais frequentemente precisam de tratamento com antibióticos estão as respiratórias, as gastrointestinais e as urinárias. Mas nem sempre essas doenças são causadas por bactérias e, nesses casos, não exigem esse tipo de medicamento. Essa variação acaba confundindo muitos pacientes.
– As queixas respiratórias nem sempre são infecções bacterianas, mas fazem com que as pessoas queiram utilizar antimicrobiano. Muitas vezes, eles são mal utilizados porque são mal prescritos – ressalta a farmacêutica Luciana de Oliveira, professora da PUCRS.
O infectologista Paulo Behar relata uma situação que, embora não devesse ocorrer, faz parte da rotina dos consultórios:
– Às vezes, tem uma criança com febre alta. É o primeiro filho, e os pais ficam apavorados. Então, eles exigem que o médico receite antibiótico. Em geral, a causa mais frequente de febre em crianças são doenças virais para as quais não se usa antibiótico. Eventualmente, um antiviral já resolve o problema. O médico tenta explicar, a pessoa insiste e ele acaba cedendo.
Só com receita médica
Desde 2010, só é possível comprar antibióticos nas farmácias brasileiras com receita médica. A regra, estabelecida por uma resolução da diretoria colegiada (RDC) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é considerada por especialistas um avanço para frear o uso indiscriminado dos antimicrobianos.
– Esses critérios resolveram um grande problema. Antes, a pessoa tinha uma infecção respiratória, ia ao médico e ele prescrevia um determinado medicamento. Quando essa mesma pessoa apresentava, posteriormente, sintomas parecidos, acabava voltando a usar essa droga ou indicando a um conhecido – afirma a professora da Faculdade de Farmácia da PUCRS Luciana de Oliveira.
A RDC 44/2010 regulou que os estabelecimentos que comercializam o produto devem "manter à disposição das autoridades sanitárias a documentação fiscal referente à compra, venda, transferência ou devolução das substâncias antimicrobianas bem como dos medicamentos que as contenham". A resolução diz ainda que "toda documentação relativa à movimentação de entradas, saídas ou perdas de antimicrobianos deverá permanecer arquivada no estabelecimento e à disposição das autoridades sanitárias" por no mínimo cinco anos.
Como ocorre a resistência
Imagine uma pessoa com uma infecção causada por mil micróbios. Destes, 998 são mais sensíveis aos antibióticos comuns e dois, mais resistentes. Se esse paciente tomar uma dose menor de antibiótico que a necessária, nem todas as mil bactérias vão morrer. Aquelas que são mais resistentes vão se multiplicar, tornando-se predominantes.
– Está feita a resistência. Uma resistência que já existia e era insignificante para a pessoa ou para a sociedade passa a ser significante, pois houve uma seleção. O antibiótico em dose menor selecionou aquelas bactérias que já eram mais resistentes – explica o infectologista Paulo Behar.
Existe alguma saída?
O relatório da OMS sobre resistência a antimicrobianos aponta que o enfrentamento ao problema passa pelo monitoramento. Mais higiene, água limpa, cuidados de saúde e vacinação também são vistos como importantes medidas para prevenção de doenças infecciosas, aliadas à necessidade de desenvolvimento de novas formas de diagnóstico e de novos antibióticos.
– É preciso envolver mais a população, que está pouco informada sobre o assunto. Os hospitais precisam ser melhor estruturados. É uma questão complexa e multifatorial, não adiantam apenas ações isoladas – analisa a pesquisadora Marisa Zenaide Ribeiro Gomes, do Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).
Em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e com a Coordenação Geral dos Laboratórios de Saúde Pública, a Anvisa institui medidas para controle nos serviços de saúde. Entre elas, está a Rede Nacional de Monitoramento da Resistência Microbiana em Serviços de Saúde (Rede RM), que tem como principal objetivo tornar a assistência à saúde mais efetiva por meio do uso adequado de antimicrobianos e de detecção, prevenção e controle. Fazem parte dessa rede hospitais sentinela, laboratórios de saúde pública, vigilâncias sanitárias e comissões de controle de infecção hospitalar.
– Uma coisa importante é avaliar o uso de antibióticos para crescimento de animais como porcos e galinhas e, também, na agricultura.
A utilização por essas vias é muito ampla e atinge uma massa de pessoas – salienta Paulo Behar, chefe do Serviço de Infectologia da Santa Casa de Porto Alegre.
Bactérias são mais rápidas que novos medicamentos
Luciana de Oliveira, professora da Faculdade de Farmácia da PUCRS, explica que as bactérias são muito mais velozes do que a capacidade dos pesquisadores de sintetizar novas moléculas. Por isso, antimicrobianos que já haviam sido deixados de lado estão sendo resgatados.
– Um dos antimicrobianos que estamos usando muito em UTI é a polimixina B, que combate uma bactéria importante que causa infecções graves e provoca surtos. É um medicamento de resgate, que já foi muito utilizado, mas é tóxico para os rins e foi deixado de lado com o surgimento de novas moléculas. Agora, como não temos mais tantas alternativas, mesmo sendo tóxico, está sendo utilizado novamente – relata.
Além disso, há certas bactérias que não têm tratamento adequado.
– A gente tem a KPC (uma superbactéria), um problema que gerou surtos em alguns hospitais aqui no Rio Grande do Sul, que é resistente à maioria dos antibióticos disponíveis. Se uma indústria farmacêutica conseguisse sintetizar uma nova molécula que fizesse efeito sobre a KPC, teria lucro sobre isso – avalia Luciana.
A pesquisadora Marisa Zenaide salienta a necessidade de criação de vacinas que melhorem a imunidade.
– O uso só de antibióticos já mostrou que, se continuarmos nesse nível, sempre que uma nova droga for desenvolvida, as bactérias se tornarão resistentes. É um ciclo vicioso. Então, para quebrar esse ciclo, é preciso desenvolver outras modalidades de terapia, outros métodos de prevenção – conclui, citando como exemplo a produção de vacinas para serem aplicadas em pacientes de risco no momento da internação, prevenindo a infecção hospitalar.