As polêmicas envolvendo ministros do governo Michel Temer tiveram um novo capítulo ontem. Desta vez, na pessoa do escolhido para a pasta da Saúde, o engenheiro civil paranaense Ricardo Barros. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o novo ministro afirmou que não há como sustentar os direitos estabelecidos pela Constituição Federal e que é preciso "repactuar" a Carta, de forma a chegar a um "ponto de equilíbrio entre o que o Estado tem condições de suprir e o que o cidadão tem direito de receber".
Barros, que obteve o cargo em troca do apoio de seu partido (PP) ao governo Temer, também defendeu que mais pessoas devem ter planos privados de sáude, de forma a aliviar os custos do governo. A revista Época divulgou ontem que o paranaense teve como maior doador da sua campanha eleitoral o presidente de uma empresa que gere plano privados. As afirmações do ministro geraram o temor de que a agenda dele envolva um estrangulamento do SUS.
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Depois das reações, a relativização
Diante das reações negativas, a assessoria do ministro divulgou um texto em que ele relativiza as declarações e assume um "compromisso com o direito de acesso à saúde pública e a continuidade do Sistema Único de Saúde (SUS)". "Não tenho nenhuma pretensão de redimensionar o SUS. O que nós precisamos é capacidade de financiamento para atender as demandas. Agora, só conseguiremos isso, espaço fiscal para a saúde, se nós conseguirmos repactuar os gastos que estão sendo excessivos na previdência", disse o ministro, de acordo com o texto divulgado.
O ministério de Temer tem gerado críticas desde antes de seu anúncio. A negociação de vagas em troca de apoio foi o primeiro tópico a chamar a atenção. Depois, veio a escolha de um grupo formado só por homens e vários deles investigados por corrupção. Nos últimos dias, são as primeiras manifestações dos novos ministros que têm despertado reações. Para o presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremers), Rogério Aguiar, as afirmações de Barros deixam a classe em alerta.
– Antes de pensar em cortar recursos do SUS, há outras medidas, por meio da gestão e do combate à corrupção.
Orientação já seria para desobrigar poder público
A profissão de fé do novo ministro nos planos privados de saúde não surpreendeu o presidente do Cremers. Segundo ele, essa tem sido a orientação do governo desde os anos 2000 e seria uma tentativa das autoridades de se desobrigarem do atendimento à população.
– Nessa questão, temos dois modelos no mundo. Um é o do Canadá e da Inglaterra, que funciona bem e é baseado no sistema público. Outro é o dos Estados Unidos, praticamente todo privado, que é um caos.
O posicionamento do novo ministro também encontrou apoiantes, caso de Armindo Pydd, presidente da comissão do SUS da Associação Médica do Rio Grande do Sul (Amrigs). Para ele, as promessas feitas pela Constituição foram demasiadas, especialmente na área da saúde, e precisam ser revistas.
– A Constituição diz que todos os cidadãos têm direito a atendimento gratuito e de qualidade, o que se revelou uma utopia. No Brasil, ninguém precisa contribuir com nada. Tem de mexer na Constituição. Uma possibilidade seria aumentar o nível de financiamento, o que é difícil. Outra é estabelecer uma coparticipação, de acordo com a renda, no custeio da saúde. O ministro tem razão. Fez bem em dizer com clareza como é que é – defende Pydd.
O constitucionalista Eduardo Carrion, professor de direito constitucional da UFRGS e da Fundação Escola Superior do Ministério Público, lembra que mudar a Constituição para reduzir direitos é assunto capaz de gerar ampla controvérsia. A própria Carta, no parágrafo 4º do artigo 60, estabelece que não pode ser apreciada nenhuma emenda que proponha a abolição de direitos e garantias individuais. Nesse sentido, afirma o professor, pode-se considerar que os direitos sociais, ou ao menos parte deles, sejam cláusula pétrea – não podem ser mexidos.
– O discurso hoje é meio arrasa-quarteirão quanto a direitos sociais. Há, por vezes, a hegemonia de uma perspectiva neoliberal que contraria os objetivos constitucionais. Muitas vezes, o discurso do administrador é em nome da reserva do possível, isto é, de que não há orçamento para atender a certos direitos. O que cabe é fixarem prioridades e examinarem isenções e incentivos, para que se possa atender aos direitos sociais fundamentais – avalia Carrion.
Zero Hora solicitou entrevista com Ricardo Barros, mas a assessoria do ministro informou que ele estava com a agenda cheia.
Um pauta para debater com os católicos
Um dos temas mais espinhosos da saúde pública brasileira, o aborto, foi tratado pelo novo ministro em entrevista publicada ontem pelo Estado de S. Paulo, mas a linha a ser seguida pelo governo ficou em aberto. Ricardo Barros declarou que a posição sobre o tema ainda está indefinida e depende de conversa "com a igreja".
O ministro reconheceu que se trata de uma questão "delicada", que vai ser "estudada com muito carinho". Ele citou dados, segundo os quais 1,5 milhão de brasileiras realizam procedimentos clandestinos a cada ano, 250 mil sofrem sequelas e 11 mil morrem. Mas acrescentou que não cabe ao Ministério da Saúde e, sim, ao governo, posicionar-se. Ele comparou o aborto a uma “mazela” como o crack.O presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremers), Rogério Aguiar, observa que os números apresentados por Barros estão corretos, mas diz que precisaria ouvir mais do ministro para saber o que ele está querendo expressar. Aguiar acha positivo discutir o tema, mas de forma técnica:
– Aborto é problema de saúde pública. Precisa ser aberta uma discussão técnica, médica. A religião é forte na nossa sociedade, e está tudo bem em se conversar com setores religiosos, mas não pode é se submeter.
Presidente regional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e arcebispo de Porto Alegre, Jaime Spengler considera o diálogo sobre o aborto bem-vindo, mas entende que há setores que não querem debater, apenas chancelar sua posições, com radicalismo. No entanto, acrescenta que a própria Igreja Católica chega à questão aferrada a certos princípios:
– A Igreja sempre defenderá a vida e se colocará na defesa da pessoa humana. No momento da concepção, já existe uma identidade. Essa identidade é frágil, mas, justamente por isso, depende de cuidado, sobretudo do poder público.
ZH pediu para falar com o ministro sobre o posicionamento a respeito do aborto. Sua assessoria encaminhou uma nota dizendo que "os serviços de saúde de obstetrícia do SUS realizam a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei" e que "o ministro Ricardo Barros, em entrevistas, ressaltou que esta assistência é uma obrigação legal e que deve ser cumprida".