Em meio à crescente epidemia do zika vírus, o Brasil se aproxima de ter uma vacina feita em território nacional para outra doença transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, mas que já assombra o país há décadas: a dengue. A última fase de testes do medicamento deixa o produto mais próximo de ser registrado e de se tornar disponível à população. A expectativa é de que isso ocorra em 2018.
É na zona oeste da capital paulista, no Instituto Butantan, que a vacina contra a dengue foi desenvolvida e é produzida e controlada. Em meio a 80 hectares de área verde, o lugar, referência na produção de soros e vacinas e na pesquisa com animais peçonhentos, é um dos pontos turísticos da capital paulista. Museus históricos, criadouros de bichos e exposições científicas são os atrativos para quem visita um dos principais centros de pesquisas biomédicas do mundo.
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A biblioteca do Butantan, um dos cartões de visita do instituto, com sua estética característica do início do século 20, contrasta com a tecnologia de ponta que se encontra dentro dos laboratórios e centros de produção industrial que, frequentemente, passam despercebidos pelos turistas.
Foi no Butantan que as pesquisas sobre a vacina contra a dengue evoluíram para que se chegasse mais perto de ter uma imunização disponível para a população. Vinculado ao Estado de São Paulo, o Butantan firmou uma parceria com os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH, a sigla em inglês), em 2008. Os americanos deram início às pesquisas, e o papel do Butantan foi trabalhar no desenvolvimento do produto até a etapa final, que viabilizaria sua produção em massa. Para isso, o instituto já tinha à disposição a tecnologia necessária para desenvolvê-la.
- Há uma série de fatores que contribuem para essa parceria com o NIH. Uma coisa é fazer em pequena escala, como foi feito nos EUA, mas outra coisa é prepará-la para fazer em escalas maiores. Todo o desenvolvimento industrial e clínico é importante. Eles necessariamente tinham de trabalhar com alguém para fazer essa vacina viável - esclarece Jorge Kalil, diretor do Instituto Butantan e professor titular de Imunologia Clínica da USP.
Técnica inovadora é conquista do instituto
Atualmente, dentro do laboratório "piloto" da dengue, os cientistas trabalham na produção dos lotes da vacina que serão usados nos 17 mil voluntários da última e terceira fase de testes clínicos. O Butantan já constrói um prédio maior para viabilizar uma produção em larga escala do produto. De 500 mil por ano, a capacidade pode chegar a 12 milhões com a nova estrutura.
Durante a produção da vacina, o laboratório é de circulação extremamente restrita. Dentro, cientistas cobertos da cabeça aos pés, com trajes especiais para lidar com material biológico, conduzem o processo, que se inicia com o cultivo vírus da dengue enfraquecido até a etapa de envasamento do produto final. O que sai desse laboratório são pequenos frascos da vacina líquida e também liofilizada - como é chamada depois de passar por um processo de secagem a frio, em que vira um pó.
A vacina contra a dengue é a única produzida no instituto que tem essa característica. A técnica é uma das conquistas dos pesquisadores brasileiros, já que aumenta a validade do produto e permite que seja transportado e armazenado em sistemas comuns de refrigeração e garante sua estabilidade. Para levar o medicamento até as áreas mais remotas e quentes do Brasil, essa característica é uma vantagem.
Depois de prontas, algumas amostras de cada lote produzido da vacina são enviadas para outro lugar, o laboratório do controle de qualidade, também dentro do complexo do Butantan. Nesse local, são armazenadas em congeladores e então retiradas para bateria de testes feitos por farmacêuticos, biólogos e químicos, que trabalham em turnos durante 24 horas, para assegurar a conformidade dos produtos. Desde que o instituto começou as pesquisas com a vacina contra a dengue, as medidas de segurança foram reforçadas, e as portas do lugar ganharam um novo aviso que diz: "Risco biológico". Mas nem por isso, a entrada lá é tão restrita quanto no espaço de produção.
Depois dos testes de controle de qualidade, a vacina está pronta para sair do Instituto e ser levada até os pontos onde serão aplicadas nos voluntários que participam da terceira etapa de estudos clínicos. A partir desse ponto, o caminho de inovação e produção que passa pelo Butantan vai ser colocado a teste na vida real.
Terceira etapa coloca eficácia da vacina à prova
Desde o início dos testes clínicos em seres humanos, 900 pessoas no Brasil e nos EUA já foram imunizadas com essa vacina contra a dengue. No total, são três etapas de estudos clínicos. Aqui no país, os testes começaram a ser conduzidos a partir da segunda fase. A avaliação feita até agora com essas pesquisas confirma que o produto é considerado seguro e altamente eficaz.
No ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deu o aval para o início da terceira e última fase de testes clínicos. Nesta etapa, é a eficácia da vacina que vai ser colocada à prova. No lançamento dos estudos, em fevereiro, 10 voluntários receberam a dose da vacina, em evento no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Um momento praticamente simbólico, para marcar o início da nova etapa, já que o cronograma de vacinação ainda está em fase de construção. Entre os centros que conduzirão os testes, acompanhamento e avaliação dos voluntários periodicamente, um deles fica no Hospital das Clínicas, em São Paulo, o primeiro a iniciar os estudos.
Durante o estudo, dois terços dos participantes vão receber a vacina com o vírus enfraquecido - que ativa o sistema imunológico para combatê-lo em caso de uma infecção. O restante será vacinado com placebo, uma substância que não contém o vírus, mas, outras propriedades da vacina. O tempo para o término da fase de testes depende da circulação do vírus da dengue no país.
- Dependemos que tenham voluntários disponíveis para fazer o estudo e também que haja casos de dengue. É assim que vamos comprovar a eficácia da vacina. Temos de respeitar o relógio da ciência. E isso pode durar um ou dois anos, ou até cinco, mas esperamos que tudo ocorra bem para acontecer o mais rápido possível - explica o infectologista Esper Kallás, coordenador dos testes da vacina da dengue na Faculdade de Medicina da USP.
Avanço nos casos do lado da ciência
Neste ano, em janeiro foram registrados 73.872 casos prováveis da doença, segundo o Ministério da Saúde. No mesmo período do ano passado, o número de casos prováveis foi 49.857. O índice mostra um avanço de 48% nas infecções por dengue no país, o que significa que os resultados que os cientistas precisam para comprovar a eficácia da vacina podem chegar logo.
Os participantes vacinados não sabem se receberam o produto com o vírus atenuado ou o placebo. Todos serão acompanhados de maneira muito próxima durante a realização dos estudos e testados para dengue quando apresentarem sintomas ou alterações clínicas. Os voluntários devem voltar periodicamente aos centros para coletarem amostras de sangue. Esse material recolhido será analisado e armazenado no laboratório liderado por Kallás, médico referência no Brasil em pesquisas sobre HIV que hoje coordena parte dos estudos sobre dengue. As amostras de sangue coletadas vão ficar depositadas em tanques ou congeladores para futuros estudos e devem chegar a um milhão e meio de unidades.
O que determinará a capacidade de proteção da vacina é nada menos do que incidência de infecção pela doença entre os próprios voluntários. É a diferença no número de casos entre os que estão realmente protegidos e os que receberam a vacina não ativa que vai determinar a força da proteção. O quanto antes os voluntários forem infectados pelo vírus, mais rapidamente os pesquisadores vão saber o índice de eficácia da vacina. Para ser considerada altamente eficaz, espera-se ao menos uma taxa de 80% de proteção. Com dados extraídos da segunda fase de testes, feitos já no Brasil, estima-se que a vacina faça com que 90% das pessoas produzam os anticorpos necessários para lutar contra o vírus.
- Esses 90% acabaram surgindo de evidências indiretas. Mas precisamos saber se a vacina protege contra a dengue ou não, e é neste estudo da fase três que vamos efetivamente ver - revela Kallás.
Butantan cobra repasses do Ministério
Para o diretor do instituto, Jorge Kalil, a prioridade é tornar o país autossuficiente para a vacina, e então, passar a exportá-la. A expectativa de registrá-la e torná-la disponível para uso da população em 2018 leva em consideração as dificuldades que a instituição enfrenta, especialmente, de cunho financeiro. Kalil afirma que os repasses anunciados pelo governo federal para financiar a última etapa dos estudos ainda não foram repassados. A assessoria de comunicação do Ministério da Saúde alega que o acordo firmado, em 22 de fevereiro, diz que 30% dos valores prometidos estarão disponíveis em até 30 dias, prazo que ainda não venceu. O ministério declara que investirá R$ 100 milhões na terceira fase do imunizante contra a dengue nos próximos dois anos, além de R$ 200 milhões, que serão repassados por outros órgãos.
- Eu tinha uma certa esperança que estaria disponível em 2017, mas está ficando cada vez mais difícil. As coisas estão indo muito mais lentas do que eu gostaria. Tem toda uma burocracia no Brasil que não tem em outros países, que dificulta muito. Além disso, nós temos de ter recursos para contratar todas as equipes que vão vacinar os grupos em todo Brasil - declara.
Cerca de cem profissionais, entre médicos e técnicos da área da saúde devem ser chamados durante este ano para acompanhar e coordenar os estudos clínicos de terceira fase no país. Só depois disso que serão chamados os voluntários pelo Brasil. Porto Alegre está na lista de cidades onde a vacinação será conduzida. Os 14 centros de saúde não iniciarão o trabalho ao mesmo tempo. Os interessados devem aguardar a divulgação do início dos testes para participar do estudo.