Vilão dos quadrinhos que viraram seriado do Netflix em 2015, Homem-Púrpura – ou Kilgrave, em Jessica Jones –, tem um poder perturbador: a certa distância, é capaz de controlar a mente de qualquer pessoa com simples comandos de voz. A habilidade adquirida na infância, quando o personagem foi cobaia de testes científicos, é ficcional, mas também levanta questões realistas sobre os limites da mente humana.
Manipular o pensamento alheio sem esforço, felizmente, ainda está distante da realidade. Mas controlar reações fisiológicas desencadeadas pela própria mente, sem passar por nenhum tipo de intervenção cirúrgica ou medicamentosa, está cada vez mais ao alcance de quase qualquer um.
Criado nos Estados Unidos no final da década de 1960, o biofeedback (em tradução literal, "bio", vida em grego, e "feedback", retorno de informação em inglês) é uma área da medicina comportamental que tem como objetivo ensinar técnicas de autorregulação aos pacientes para sanar disfunções do corpo. O tratamento não invasivo de algumas doenças se torna possível por meio de uma espécie de treinamento cerebral elaborado por profissionais – geralmente psicólogos – após um diagnóstico.
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Usando sensores que podem ser conectados a diferentes partes do corpo, o biofeedback é capaz de identificar o que ocorre no organismo de quem sofre dos males mais diversos, como enxaquecas, fobias, bruxismo e arritmias cardíacas. O diagnóstico é transformado em informações que servirão como guia de técnicas – que vão desde exercícios de respiração e concentração até terapia com visualização de imagens –, para que a pessoa use o poder da mente para se livrar definitivamente do problema.
– O tratamento propõe exercícios, mas é diferente de uma academia cerebral. Isso porque, uma vez treinado, o cérebro aprende, se autorreforça. O paciente fica independente – explica a presidente da Associação Brasileira de Biofeedback (Abbio), Cinara Ferreira Soares.
O biofeedback ainda tem uma adesão tímida no Brasil – atualmente, a Abbio tem cerca de 80 profissionais registrados em todo o país –, e é marcado pela interdisciplinaridade. Em boa parte dos casos, é usado como terapia complementar, para auxiliar em tratamentos mais convencionais, como a fisioterapia. Mas sua utilização está cada vez mais difundida entre estudantes e atletas que querem melhorar seu desempenho ou atingir objetivos pontuais.
– Aqui ainda é algo novo, mas nos Estados Unidos, por exemplo, é comum que equipes de atletas tenham um profissional que trabalhe com biofeedback para ajudar na concentração e no controle emocional. É uma tendência nessa área – diz Cinara.
Conheça as principais aplicações da técnica no Brasil.
Reflexos do estresse no corpo
Poucas palavras são tão familiares a quem vive a rotina intensa de centros urbanos como o estresse. A tensão, muitas vezes desencadeada pelo excesso de atividades a serem administradas no dia a dia, mexe com a mente, mas gera reflexos também no funcionamento do organismo.
– As reações fisiológicas não existem sem o pensamento. Ele é um gatilho para elas – afirma a doutora em psicologia Ana Maria Rossi.
Uma das pioneiras no uso do biofeedback no Brasil, a jornalista que se especializou em psicologia sentiu na pele, nos anos 1970, os efeitos do estresse. Morando nos Estados Unidos sem saber falar inglês, ela se viu acuada pelas dificuldades de comunicação e seu corpo reagiu: insônia, taquicardia e dores de cabeça foram os sintomas que a acompanharam por meses. Até que, por indicação de uma amiga, participou de experimentos de biofeedback, à época em fase de estudos.
O resultado foi tão surpreendente que Ana Maria resolveu ir mais fundo. Tornou-se monitora do profissional que a auxiliou no treinamento, e, mais tarde, trocou a comunicação pela psicologia. Retornou ao Brasil nos anos 1990, já como especialista no assunto.
– Em uma semana, comecei a ver resultados. Até aquele momento, eu não sabia que uma pessoa podia ter esse autocontrole – diz a profissional, que trabalhou técnicas de respiração e terapia durante o treinamento.
Diante de uma área abrangente, escolheu trabalhar com casos semelhantes ao seu. No consultório em Porto Alegre, equipamentos que medem tensão muscular, temperatura das extremidades, frequência cardíaca, atividade das glândulas que produzem suor, ondas cerebrais e atividade do sistema vascular são utilizados para identificar problemas cujas soluções se relacionam, principalmente, com técnicas de relaxamento.
– A respiração é muito importante no diagnóstico e nos treinamentos. Ela é um termômetro das nossas emoções – diz.
A avaliação dos pacientes é feita em uma sessão dividida em sete etapas e inclui, além de um questionário escrito, algumas perguntas incômodas feitas pela psicóloga – para provocar ansiedade no paciente no momento das medições – e, por fim, uma sessão de relaxamento. O diagnóstico vem após um cruzamento das informações dadas pelo paciente com aquelas fornecidas pelo equipamento.
A partir daí, é estruturado um treinamento, com deveres de casa, para que a pessoa aprenda a monitorar o distúrbio e lidar com ele. O objetivo é, por meio de exercícios, atingir o estágio ideal – quando o corpo não manifesta mais o sintoma. Para auxiliar no processo, as sessões contam com um equipamento que transforma as reações fisiológicas em sinais de luz e som. Assim, o paciente pode visualizar quando o objetivo é alcançado.
Diferentemente de outras terapias, os resultados costumam chegar mais rápido. O tratamento de casos considerados mais simples, como sudorese excessiva nas mãos, dores de cabeça e bruxismo, por exemplo, pode se encerrar em oito sessões. Já casos mais complexos, como as fobias, costumam exigir um pouco mais de tempo.
– É um programa de autocontrole, no qual a pessoa consegue gerenciar-se sozinha depois. Mas o treinamento é personalizado e cada organismo reage de uma maneira, então o tempo pode variar – conclui Ana Maria.
Cérebro treinado
Entre os diversos tipo de biofeedback, uma área dedica-se especificamente a um órgão tão complexo quanto especial. Chamada de neurofeedback, ela é capaz de avaliar e treinar as diferentes regiões do cérebro para alcançar reações esperadas.
Em uma primeira avaliação, o paciente veste uma touca com 19 sensores que farão um mapeamento das frequências cerebrais. As informações fornecidas por esse documento ajudam a montar um programa de treinamento.
A utilização do neurofeedback, porém, vai além do tratamento de patologias. Com o uso de jogos e técnicas que permitem treinar diferentes regiões cerebrais ao mesmo tempo, cada vez mais ele é usado por quem busca melhorar seu desempenho, seja no trabalho, nos estudos ou no esporte.
– As pessoas estão acostumadas a se preocupar com o corpo, fazer exercícios, mas não cuidam do cérebro. Só que ele é fundamental para que ela possa ter êxito nas suas funções e manter a qualidade de vida, envelhecer melhor – diz a psicóloga Adriana Rublescki.
Realizados em frente ao computador, os treinos podem exercitar, simultaneamente, áreas do cérebro responsáveis pelo foco e pelo controle emocional, por exemplo. Com o auxílio de sensores, o paciente tenta cumprir desafios propostos pela máquina. Quando atinge o objetivo, é sinalizado: no caso de um jogo, pode ganhar pontos, fazendo um bonequinho subir montanhas ou um buda se iluminar; um videoclipe pode aumentar ou diminuir na tela, assim como o volume do som.
O curioso é que, em tese, não é preciso fazer nada para obter sucesso. Basta mirar a tela e tentar, com o foco e a respiração adequados, equilibrar as barras que mostram as reações cerebrais.
– As pessoas estranham no começo, acham que precisam fazer alguma coisa. Mas não é a força do pensamento, é o estado mental delas que as faz atingir o objetivo. Não é um ato cognitivo, mas um treino – explica a profissional.
Atletas internacionais vitoriosos, como Tiger Woods e Usain Bolt, treinam o neurofeedback, que é, frequentemente, combinado a outras técnicas de biofeedback para atingir melhores resultados. Mas cresce a procura por vestibulandos e concurseiros que precisam trabalhar questões de foco e controle emocional para realizar suas provas.
Segundo a psicóloga, o tempo de treinamento pode variar para cada situação, organismo e objetivo do paciente. Em geral, são feitos conjuntos de 20 ou 30 sessões no consultório – mais alguns "temas de casa".
Os valores dos pacotes partem de R$ 3 mil.
Em busca de foco e concentração
Teoria e prática entraram em conflito quando Bruno Heck fez sua primeira avaliação de neurofeedback. Capitão do Exército e integrante da Seleção Brasileira de Tiro, o porto-alegrense de 29 anos conheceu a técnica por meio da literatura quando era treinador da equipe de tiro da Academia Militar do Rio de Janeiro, seis anos atrás. O gatilho para testá-la na prática, no entanto, só foi acionado em 2014.
Após uma mudança nas regras do esporte que exigia mais controle emocional nas etapas finais das provas, viu seu desempenho, marcado por títulos nacionais e sul-americanos, decair. Com foco na Olimpíada do Rio de Janeiro, a ansiedade virou seu novo alvo.
Depois de descobrir um profissional que trabalhava com a técnica em Campinas (SP), Bruno estava prestes a fazer as malas para iniciar o tratamento por lá quando soube que o neurofeedback também tinha adeptos em Porto Alegre. Resolveu ficar.
Após a avaliação, com o auxílio de uma profissional, traçou metas para melhorar a respiração e o foco e controlar a ansiedade. Na primeira sessão de treinamento, com sensores conectados a sua cabeça, mirou em uma tela um bonequinho que se movia deliberadamente. Ou nem tanto. Era seu cérebro que o controlava.
– Tinha lido sobre a técnica, mas na hora não acreditei. O boneco, supostamente, devia estar fazendo o que eu quisesse, mas não era o que acontecia. Depois a psicóloga me explicou que aquela reação era normal – lembra.
O experimento, que seria usado diversas vezes durante seu treinamento, consistia em uma espécie de jogo pré-programado para só funcionar quando o cérebro atingisse o estado desejado de atenção e concentração.
– Hoje, ele move o boneco com facilidade, mas, nas primeiras sessões, isso é quase impossível – conta a psicóloga Cinara Soares.
Após o primeiro contato com o aparelho, uma série de exercícios ainda inusitados entraram na rotina de Bruno. Além de meditação, realizada com o auxílio de aplicativos de celular, Bruno começou a treinar técnicas de respiração e, o mais peculiar, elevar a temperatura corporal em três graus apenas com a concentração.
Os fracassos iniciais geraram desconfiança, sentimento reforçado pelo técnico da equipe de tiro, um ucraniano focado no aprimoramento técnico dos atletas. Até que veio a primeira competição após o começo dos treinos de neurofeedback.
– Notei a diferença na parte de concentração e foco, e meus resultados melhoraram em relação a disputas anteriores – comemorou.
Mas a rotina de viagens interferiu no treinamento, que não pode ser seguido à risca pelo atleta até os Jogos Pan-Americanos de Toronto, em 2015, decisivos para a classificação olímpica. Bruno terminou a competição sem alcançar a colocação necessária para a vaga. Entretanto, uma categoria sem representante brasileiro ainda dá para Bruno a possibilidade participar dos jogos no Rio de Janeiro.
– Os exercícios de concentração e relaxamento são úteis em qualquer profissão e também na vida pessoal – diz o atleta, que segue os treinamentos de neurofeedback em Porto Alegre.
Fisioterapia com auxílio visual
Pacientes do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, que precisam de fisioterapia, deparam com um tratamento um pouco diferente do convencional. Os exercícios são os de sempre, mas realizados com sensores conectados ao corpo e acompanhados na tela de um computador.
– O aparelho capta o sinal elétrico do movimento e o transforma em um gráfico de fácil entendimento para o paciente. Assim, a pessoa consegue ver até onde pode ir, e o fisioterapeuta vê se o exercício que ela está fazendo é o mais eficiente para o seu caso – explica a fisioterapeuta Bianca Giglio de Oliveira Lima.
A eletromiografia de superfície, como é chamada a avaliação que mede os sinais elétricos emitidos pelos músculos, é transformada em treino de biofeedback e usada como terapia complementar no Albert Einstein desde o final da década de 1990. Ela é aplicada em diversos casos: desde lesões medulares até paralisia facial provocada por um AVC, por exemplo. Mas também pode ser usada em outros tratamentos que envolvem contrações musculares, como em casos de bruxismo e dores de cabeça provocadas por tensões musculares.
O hospital não tem estatísticas, mas garante que o uso de biofeedback otimiza os resultados da fisioterapia tradicional em boa parte dos tratamentos. A exceção para aplicação da técnica, segundo a fisioterapeuta, são pacientes com lesões que comprometeram os nervos, como algumas paralisias. Nesses casos, não há emissão de sinais, o que impede o uso do equipamento.
– Em um paraplégico, no local onde há a lesão medular completa, não dá para usar. O tetraplégico às vezes tem músculos preservados, com motricidade, com os quais é possível trabalhar – diz Bianca.
Assim como os demais tipos de biofeedback, o uso não é recomendado para pacientes com problemas cognitivos. Crianças podem ser submetidas aos treinamentos, desde que já estejam em idade escolar.
Conheça pontos trabalhados no biofeedback
Respiração
É trabalhada com um aparelho que monitora a frequência cardíaca. Com o sensor conectado ao corpo, o paciente realiza exercícios que buscam atingir um estado de coerência cardíaca (pré-estabelecido com o profissional).
Pode ser usado para tratar enxaquecas, problemas de pressão, insônia e para melhorar o foco, por exemplo.
Neurofeedback com faixa
A faixa é colocada com o sensor direcionado a uma área específica do cérebro para o treinamento. O treino é feito com o auxílio de jogos ou vídeos e a faixa permite trabalhar apenas uma região por vez.
Pode ser usada para tratar oscilações de humor, problemas de memória, controle de impulsos e melhora de foco.
Neurofeedback com touca
A touca é utilizada na avaliação de neurofeedback, quando é feito um mapeamento das frequências cerebrais do paciente. No treinamento, a vantagem em utilizá-la em vez da faixa é que permite que sejam trabalhadas mais regiões cerebrais simultaneamente. Também utiliza jogos e vídeos durante o treino.
Pode ser usada para as mesmas finalidades que a faixa, e também para equilibrar algumas funções (como controle de impulsos e foco, por exemplo).
Temperatura corporal
Com um sensor ligado a um termômetro anexado à ponta do dedo, o paciente monitora sua temperatura corporal. O objetivo é sempre aumentá-la. O treino é realizado para trabalhar relaxamento – quando a pessoa está relaxada, os vasos costumam se dilatar, elevando a temperatura.
Pode ser usado no tratamento de enxaqueca, insônia, problemas circulatórios, como mãos e pés gelados.
Feedback muscular
Sensores são colocados em contato com a pele sobre os músculos cuja tensão se quer controlar. Os sinais elétricos emitidos pelo músculo são captados pelo aparelho e transformados em um gráfico didático, de forma que o paciente, no momento da fisioterapia, possa ver o movimento que está realizando e até onde é possível chegar.
Pode ser usado como terapia complementar à fisioterapia, no tratamento de lesões das mais diversas, paralisia facial causada por AVC, entre outras indicações.