Ao ver uma babá entrando em seu consultório, com uma criança agarrada pela mão ou pendurada aos braços, o pediatra Renato Santos Coelho não poupa a pergunta:
- Vieram só vocês hoje?
Nesse tipo de situação, a resposta que ouve da profissional é quase sempre a mesma:
- A mãe não pôde sair do trabalho, o pai também não. Então, eu vim.
Coelho tem consultório em Porto Alegre há três décadas e nunca viu a cena descrita se repetir tanto quanto nos últimos anos. A percepção do médico é de que a porcentagem de crianças que chegam à consulta acompanhadas da mãe caiu - apesar de continuar sendo a maioria. No lugar antes ocupado quase sempre apenas pela figura materna, que conquistou maior espaço no mercado de trabalho, aparecem cada vez mais pais e avós. Só que o tempo também tem sido corrido para esses. Aí, a saída parece ser uma só: levar a criança aos exames de rotina vira mais uma das atribuições da babá.
- A presença delas e também de outras pessoas, como funcionários de escolinhas, cresceu bastante. A gente sabe que existe a dificuldade de pai e mãe saírem do trabalho, mas o que tem ocorrido é também devido a uma tendência à terceirização da criação dos filhos - avalia Coelho, presidente do Comitê de Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul (SPRS).
"Ninguém consegue substituir uma mãe", diz presidente da Academia Brasileira de Pediatria
O reflexo disso é uma crescente demanda por funcionárias que assumam todas as funções enquanto os pais estiverem ausentes. Sônia Godinho, diretora da Kanguruh, empresa de Porto Alegre que atua há mais de 10 anos em seleção, treinamento e indicação de babás, resume o perfil procurado:
- Tem pais que trabalham fora, até mesmo em outra cidade, que só voltam para casa no final da tarde e realmente precisam que a babá assuma esse papel de levar e buscar a criança na escola, em atividades extracurriculares ou no médico. Eles ligam para cá e dizem que precisam de uma pessoa dinâmica, ativa, que tenha iniciativa.
Pais ausentes, crianças menos amorosas
A delegação do cuidado das crianças a terceiros é um fenômeno do qual os especialistas passaram a ser testemunhas. O pediatra José Paulo Ferreira afirma que as babás se qualificaram muito nos últimos anos, mas não concorda com o fato de, em alguns casos, elas saberem mais sobre as crianças do que os próprios pais.
- Elas assumiram um grau de comprometimento de tal maneira que, muitas vezes, são as babás que sabem como a criança está dormindo e comendo. É claro que a vida está corrida, mas os pais precisam se envolver na educação e na saúde da criança. Tem coisas que devem ser prioridades. E cabe também a nós, enquanto médicos, alertá-los para isso - defende Ferreira.
Excesso de obrigações na infância pode prejudicar desenvolvimento das crianças
Para o pediatra paulista José Martins Filho, professor da Unicamp e autor de livros como Quem Cuidará das Crianças? e A Criança Terceirizada (leia a entrevista completa), a ajuda de um terceiro não é necessariamente prejudicial. No entanto, é importante que os pais não entreguem a uma auxiliar todo o cuidado dos filhos - e, com ele, o lugar de referência.
- A vinculação da criança com os pais é tão fundamental que a privação dela pode ser causa de problemas de desenvolvimento futuros. Uma criança terceirizada, que fica muito longe da família, tende a ser uma pessoa menos amorosa. Não tenho a mínima dúvida disso, existem dezenas de trabalhos neste sentido. Quem não sente amor tem mais dificuldade de amar.
Os pediatras ouvidos pela reportagem de ZH afirmam que a terceirização é mais frequente em uma classe social elevada, que têm dinheiro para custear alguém que cuide dos filhos, o que desperta uma contradição, conforme Ferreira.
- Os pais que conseguem contratar uma babá com tal grau de comprometimento são profissionais bem estabelecidos. E, sendo bem estabelecidos, poderiam ter maior liberdade no trabalho, organizar a agenda conforme a necessidade, e ter mais tempo para os filhos - avalia Ferreira.
"Educar pressupõe sempre desagradar à criança", diz psicóloga Rosely Sayão
Elis de Pellegrin Rossi, psicóloga infantil do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, afirma que as decisões que envolvem a terceirização estão ligadas ao que cada família entende por "cuidar" do filho. Para algumas, explica a especialista, o importante é trabalhar para garantir às crianças um futuro próspero - enquanto, para outras, o que vale são os pequenos momentos do dia a dia.
- Depende muito do valor que a família atribui para a atividade que está delegando para outra pessoa. Talvez para uma mãe essa consulta não seja algo de tanta importância como seria o primeiro dia na escola, mas para outra mãe pode ser diferente. Não existe uma régua padrão - explica.
Especificamente ao fato de estar ou não presente em uma consulta médica do filho, a psicóloga acredita ser necessária uma avaliação particular e racional de cada caso:
- Se a babá puder ir à consulta médica com a criança e dar mais atenção a este momento, talvez seja mais produtivo do que a mãe, que iria na correria, com pressa. É para isso que a gente precisa olhar. O papel da função materna poder ser desenvolvido por outros cuidadores, mas isto não quer dizer que a mãe é substituível em todas as circunstâncias.