O sentimento de purificação que toma conta das pessoas de alguma maneira estimuladas a inventariar o que fizeram se repete a cada final de ano e se traduz no aumento de mortes violentas, crises de depressão e taxas de suicídio. Deflagrado o processo de depuração ordenado pelo calendário, a rotina é sempre a mesma: identificam-se os maiores erros e fracassos e, em seguida, buscam-se os culpados, que invariavelmente são os outros. Nem a paliação mercantilista do Natal consegue amordaçar o protesto interior pelo pouco que fizemos e o contraste humilhante com o muito que poderíamos ter feito.
É quase comovente observar as mesmas pessoas que, durante o ano inteiro, foram incapazes de ajudar alguém, agora de mãos dadas a entoar cânticos de solidariedade e a pedir ajuda a um Deus que, imagino, deve se dobrar de rir. Ou não é cômico ver alguém que passou o ano improvisando desculpas para não trabalhar se vestir de branco e se empanturrar de lentilha, para ter ventura no Ano-Novo? Atribuir sorte aos que conseguem alguma coisa é a maneira mais simplista de justificar o desencanto dos que nada conseguem.
A nossa formação religiosa de dependência divina contribuiu em muito para o modelo que não pode prescindir de ajuda externa para alcançar o que quer que seja. E muito poucos têm perspicácia para perceber que esta pseudonecessidade foi solertemente produzida por uma casta poderosa que comandou o mundo por séculos e séculos, fazendo-nos acreditar em promessas de céu e castigos de inferno. E, para não deixar dúvida de quem comandava quem, ainda impunha aos crentes que confessassem seus pecados.
Por este modelo singelo, o que conquistamos é generosidade divina, e o que perdemos é punição por termos sido menos submissos. Convenientemente ignorando que céu e inferno são construídos e desfrutados enquanto vivemos, para serem curtidos ou penitenciados aqui mesmo, sem exigência de senhas para um hipotético Juízo Final. Todo mundo quer ser feliz, mas tem dificuldade de aceitar com naturalidade que determinadas conquistas têm pré-requisitos, que envolvem estudo, sacrifício, treinamento e determinação. Quanto mais educado o indivíduo, menos propenso estará a crer em ajudas celestiais para se impor no mundo dos que constroem a vida que mereceram pelo suor que derramaram. Sem desprezar a sorte, que virá se tiver de vir.
Mas certamente sem esperar que Deus lhe dê, como simples prova de afeto recíproco, o que não fez por merecer. Fora desta lógica se enquadram todos os devotos por necessidade e os pregadores por conveniência. Mas como a solidão é a doença do século e sempre há quem acredite em milagres, os intermediários de fé duvidosa vão prosperando às custas da ingenuidade dos incautos, para os quais nunca é valorizada a importância de fazer, confiando-se sempre na suficiência de acreditar.
Sei que nunca serei convocado, mas, se tivesse de redigir um desses sermões, eu diria que a meritocracia precisa ser entendida assim: o que se ganha na colheita é sempre proporcional ao quanto se empenhou na plantação. Não precisamos professar religião para descobrir que o esforço para fazer a diferença na vida das pessoas eliminará o espaço para a inveja, a picuinha e o supérfluo, e estenderá o tapete para esta entidade protetora que tantos chamam de Deus.
Assim entendidos, poderemos ser felizes ou não no ano que se inicia, mas teremos feito a nossa parte. Então, que venha 2016. E com a força que quiser!