Uma adolescente chorava desesperadamente à mesa porque, durante uma mordida numa noz que participava do recheio do peru, sentiu um estalo na boca e descobriu que aquilo produzira uma lascadura quase imperceptível num dos dentes incisivos. Enquanto se lamentava inconsolavelmente, merecendo apoio de toda a família que se desdobrava em consolos inúteis, o avô, com mais de 80 anos, seguia impassível, mastigando a principal iguaria com a escassa velocidade que lhe permitia uma prótese meio frouxa. Agora estavam distanciados por realidades diametralmente opostas, mas é seguro que houve um momento em que a percepção da primeira perda deve ter provocado nele uma reação de inconformismo, menos histriônica por certo, mas ainda assim, inconformismo.
O passar dos anos significa para todos uma sucessão das perdas e, por imposição tácita, um ritual de aceitação delas, na medida em que se percebe que o envelhecimento impõe, por critérios de sobrevivência, o estabelecimento de prioridades. Nesta linha de disponibilidades, não importa ter celulite na coxa se a velhinha puder se levantar sem ajuda, e caminhar sem amparos é infinitamente superior a qualquer físico sarado.
O que não muda é a intolerância à perda dos sentidos. Em juízo perfeito, ninguém se conforma de perder a audição, muito menos a visão. Se a perda da audição for tolerada com indiferença, estamos diante de um paciente que perdeu tanto do sentido da vida útil que não ouvir direito já não faz diferença. No imaginário dos pacientes agradecidos, nada se compara em divindade ao talento do médico que foi eficiente na restauração desses sentidos. Nesses anos de atividade cirúrgica, aprendi a reconhecer o potencial de humilhação que a falta de ar impõe a quem não tem fôlego para argumentar e me fascinei com o deslumbramento daqueles que puderam recuperar a voz perdida, por exemplo, em lesões traumáticas de traqueia.
O Rodolfo era um tipo interessante. Aos 34 anos, tinha dupla função: durante a manhã, trabalhava na roça e, à tarde, dava aulas numa escola primária no interior do município. Foi quando se acidentou. A batida de frente fez com que a capota da caminhonete entrasse na cabine e lhe arrancasse parte da traqueia no pescoço. Por muita sorte, nenhum vaso foi atingido. Com a traqueia exposta, foi levado a um hospital de onde teve alta um mês depois, com uma abertura no pescoço, por onde respirava. Voltou a trabalhar na lavoura, mas, da sua carreira de professor, foi aposentado por invalidez.
Cinco anos mais tarde, dias depois de ter proferido uma conferência sobre cirurgia da traqueia, recebi o Rodolfo no consultório. Ambidestro, comunicava-se por bilhetes que redigia com incrível rapidez. Curiosamente, nunca perdera o impulso de tentar falar e, frustrado na tentativa, escrevia o que planejava dizer. A endoscopia mostrou que a reconstrução seria simples. As cordas vocais eram normais, e o segmento de traqueia lesado, relativamente curto.
Terminada a operação, ele foi transferido para a UTI ainda com um tubo na traqueia. Quando despertou, o tubo foi removido e lhe perguntei: "Tudo bem, Rodolfo?". A resposta "Tudo bem!" saiu a jato, mas ouvir a própria voz depois de cinco anos de mudez total provocou uma mistura de exultação e lágrimas, que se arrastou pelo resto da tarde. Quem tagarela o tempo todo sem pensar no privilégio desta maravilha nunca conseguirá dimensionar o tamanho daquela euforia. Nem a consequente gratidão.