Acho que todos nós, não importa a idade, precisamos dessa figura. Maravilhoso se é o pai de sangue, e melhor ainda se ele é, ou foi, amado no limite da plenitude a ponto de nunca morrer mesmo tendo morrido.
Quando a perdemos, parece inevitável que, depois de um tempo de desorientação, a orfandade nos empurre para alguma alternativa compensadora. Só por isso já seria recomendável que cuidássemos dos amigos velhos pois, a qualquer momento, um deles poderá ser convocado para assumir a função.
A espontaneidade do afeto que alimentou a minha relação com Affonso Tarantino, só percebi anos depois, fez com que ele ficasse lá, acomodado no banco de reservas, à espera de ser chamado para tomar conta da posição quando meu pai saiu de campo para não mais voltar.
Passados oito anos, perdi o professor Tarantino, meu segundo paizão, numa terça-feira muito fria de julho passado, absolutamente lúcido, a duas semanas de completar 99 anos. Foi meu anfitrião na Academia Nacional de Medicina (ANM), tendo na minha posse proferido um discurso inesquecível.
Quando o afeto transbordou os limites da relação pessoal, ele o canalizou para os meus netos, que passaram a receber presentes sempre marcados pelo carinho e a generosidade de um homem doce e sábio. Nos largos anos de convivência intermitente, trocamos muitas correspondências. Mesmo quando passou a usar o computador, ele o fazia sob protesto, porque gostava de fato era de escrever numas cartelas retangulares de papel grosso. Às vezes, começava com letra graúda e, de repente, tendo percebido que o assunto se alongaria, diminuía a letra e, se necessário, rabiscava uma flecha e passava para as costas do papel. A única certeza é que a comunicação se encerraria naquela única cartela. Tenho 61 dessas pérolas guardadas numa gaveta transbordante de afeição.
Em um desses recados, cheio de entusiasmo, dizia: "Se eu tivesse uns 30 anos menos, iria embora para Porto Alegre e imagina a quantidade de pulmões que transplantaríamos juntos!".
Há quatro anos, como presente de aniversário, ganhei um chapéu de palha com um bilhete, sempre inteligente, rico de ironia, deboche e carinho: "Sabe qual a palha mais fina que existe? Não? Que pena que não entende nada de palha! Saiba que é a do arroz, a mesma deste presente que a minha filha trouxe da Itália na semana passada. Há alguns anos, vi uma foto com um desses chapéus na cabeça do Picasso. Ficou bem. Se ficou bem na cabeça do Picasso, não há razão para não ficar bem na sua. Abraços, Tarantino!".
Há três Natais ele enviou as peças em miniatura de um presépio completo em porcelana e a promessa de que a qualquer hora ele apareceria para conferir a montagem e dar um susto nas crianças porque a cara de Papai Noel há anos estava pronta.
Em outra ocasião, mandou-me uma estatueta de ferro, de Dom Quixote, com a lança restaurada por ele mesmo. Pedia que eu a entregasse ao João Pedro (meu neto mais velho), com a recomendação: "Caro Joãozinho: quando tiveres idade para descobrir o significado do Dom Quixote eu não estarei mais aqui, mas teu amado avô estará. Conte pra ele a tua descoberta e ele e eu (estarei espiando) vamos ficar bem felizes!".
No ano passado, fiz uma conferencia na ANM que foi muito elogiada. Ele estava doente e não compareceu, mas mandou um bilhete que dizia: "Soube do teu sucesso na Academia. Cuide desta tua cabeça maravilhosa, porque a minha está indo embora. Quanto ao coração, deixa comigo! Sou capaz de querer bem por nós dois!".
Há uns seis meses ele internou com uma pneumonia grave e esteve na UTI. Eu ligava todos os dias para uma das filhas que me mantinha informado.
Quando teve alta, escreveu: "Eu vou me aguentando por aqui. Mas não se preocupe tanto, porque o que está vivo em mim é o que está vivo em você. Viva por nós dois!".
Naquele dia, com ele ainda ao alcance do telefone, foi bem mais fácil prometer. Depois da perda, a confirmação: a intensidade do afeto continua sendo o melhor antídoto da morte.