Morrer, literalmente, é de um primarismo e de uma pobreza que contrastam com a engenhosidade e a exuberância dos sonhos concebidos naquela fase da vida em que fantasiamos ser o que provavelmente nunca seremos. Superada essa etapa de projetos irrealizáveis e promessas falaciosas, os modelos da vida real começam a se esboçar com diferentes perspectivas. E todos, de uma maneira mais ou menos elaborada, tentam sublimar a rudeza da morte e seguir vivendo, apesar da ameaça.
Excluída a legião tristemente majoritária dos que gastam a vida tendo como único alvo a sobrevivência - e desses não se pode exigir mais do que tristeza e resignação -, emergem dois grupos de pessoas mais equipadas do ponto de vista intelectual e econômico, ou seja, aquelas que têm condições de realmente planejar o que querem ser. Evidentemente, se vão conseguir ou não dependerá de uma série imensa de fatores aleatórios, como inteligência, iniciativa, perspicácia, ambição, oportunismo, coragem e, naturalmente, uma pitada de sorte. Esses ingredientes que dão à vida o delicioso colorido do imponderável.
Mas não é dessas dificuldades e vicissitudes que quero me ocupar. Pretendo, antes, rever as motivações que tornam tão diferentes os indivíduos que, partindo do mesmo ponto de largada e com os mesmos equipamentos, escolhem caminhos tão diversos na busca da realização e da felicidade pessoal.
Há os egocêntricos, que crescem enclausurados na autossuficiência, constroem grandes fortunas, esmagam os concorrentes, odeiam qualquer Segundo Caderno, esbanjam vaidades discutíveis, casam com mulheres bonitas e fúteis, montam sofisticadas academias em casa e, ainda assim, engordam muito, morrem antes da velhice e promovem velórios silenciosos, rodeados de amigos falsos e parentes interesseiros. Alguns poucos, constrangidos pelo estigma do egoísmo, fazem doações espalhafatosas e nem tentam disfarçar a expectativa de reconhecimento. Mas, mesmo na homenagem, não conseguem dissimular a falta que faz a espontaneidade. A avareza é uma tatuagem com tinta colorida, dolorosamente irreversível. Para esse grupo, a morte é a única terapia eficaz, compreensivelmente acelerada pelo esquecimento.
No contraponto, estão as criaturas especiais que nasceram para outro tipo de façanha: a de modificar para melhor a vida dos outros. Alguns desses até ganham dinheiro, não porque o perseguiram, mas como prêmio por sua competência. Para esses tipos, não há espaço para ostentação, nem tolerância com as mediocridades laureadas. São modestos e austeros, detestam exibicionismo e estão sempre inconformados por terem feito menos do que conceberam realizável. Não se queixam de fracassos eventuais e até usam deles para se fortalecerem ainda mais e esticar a corda do possível. São estoicos na doença e comovem seus pares pela bravura e pela resiliência. Quando a morte física chega, parece que não. Há tanto para relembrar e tantos projetos energizados pela contagiante gana de viver, que eles serão perpetuados, pelo menos até que morra o último felizardo agraciado pela ternura do convívio.
Li o obituário do Silvio Antonio Zanini com a leveza de quem tinha convivido e testemunhado, pela vida afora, a doce passagem de um desses tipos imortais. E, depois que chorei, senti vontade de melhorar.