Na época em que foi operada, Maria Emilia trabalhava num salão de beleza havia mais de 20 anos. Soube depois que tinha sido demitida quando a nova gerente, em nome da revisão de custos, atualização de metas e planejamento estratégico - essas expressões meio abstratas que os empresários usam para se livrarem de empregados com mais de 50 anos -, entregou-lhe o aviso prévio.
Meio perdida, pensou em montar seu próprio salão imaginando o apoio de clientes antigos, mas foi surpreendida por um convite desafiador: trabalhar numa funerária como embelezadora de cadáveres.
E, então, se realizou.
No nosso reencontro, esbanjando saúde e entusiasmo, contou-me da tarefa insólita de transformar uma face de dor, desespero ou medo, em alegria, ou, pelo menos, em serenidade. Confessou-me que, às vezes, pressionada a devolver rapidamente o corpo, não conseguia o efeito planejado e se frustrava, mas outras tantas, varava noites insones para ser compensada por um rosto tão natural e amistoso que lhe estimulava a dialogar com o cadáver, sem cogitar que pudesse estar enlouquecendo. Muitos artistas, como se sabe, com graus variados de excentricidade, bateram longos papos com suas obras acabadas.
O nome desse sentimento? Realização pessoal.
Em 2004, num congresso no Algarve, visitei uma aldeia de pescadores portugueses perto do hotel e conheci João Maria, o decano da vila. Com olhos foscos por uma catarata visível, e a pele enrugada pelos 80 anos de exposição ao sol, ele era a simpatia materializada no convívio com uma penca de netos que o adorava e uma legião de turistas que se acercavam para ouvir-lhe contar o trabalho que dava construir artesanalmente a isca perfeita. E com a boca sorridente, mas o olhar desfocado, deixava-se fotografar.
Nosso primeiro contato tinha sido superficial, a conversa entrecortada e ruidosa deixara a sensação de desperdício. Voltei cedo no dia seguinte. Ele já estava sentado no seu trono, um banco de madeira lustrada, dentro de um barco velho, abandonado na beira da praia.
A empatia, esse sentimento que ninguém explica, foi instantânea. Conversamos muito antes que começassem a chegar os primeiros chatos avulsos e, ao me despedir, sabendo que eu voltaria para o Brasil no dia seguinte, presenteou-me com um conjunto completo de iscas, uma tralha enorme. Nesse momento, fui salvo por um dos netos que, percebendo meu apuro, disse: "Vô, sinto muito, mas o doutor não é pescador, e nós não podemos abrir mão de uma das suas iscas mais perfeitas!".
Com o olho mareado, um terço chateado pelo presente interrompido, mas dois terços encantado pela importância que os netos ainda lhe davam, me disse: "Desculpe, doutor, mas esses miúdos não me largam de mão. Nem sei o que será deles quando me for!".
Chamou a filha, que montava uma tenda perto dali, para que, ao menos, servisse-me um suco. Soube por ela, então, que há muito os netos aderiram à pesca industrial, mas ninguém tinha coragem de contar ao avô da inutilidade das suas iscas.
Segredou-me também que a cara sorridente ou amarrada do pai era o jeito de ela saber o quanto tinha sido perfeito, ou não, o seu trabalho irretocável e inútil. Aprendi com João Maria, um velho pescador analfabeto, que a tristeza mora naqueles espaços vazios que ficam entre as coisas feitas pela metade.